Num caso de violência doméstica tornado público - coisa rara - um homem prendeu a esposa com uma corrente (com 13 quilos de peso, treze!) a um tanque de roupa situado num barracão agrícola. Deixou-a nessas condições durante uma semana, a pão e água. Os factos deram-se numa aldeia transmontana, o que para o caso não interessa nada.
Os vizinhos não deram conta de nada - nunca dão, o normal é saberem só quando já é tarde de mais - e, ao fim de uma semana, a mulher conseguiu libertar-se e procurar ajuda. Foi levada para o hospital de Mirandela.
A RTP fez uma reportagem no local e recolheu opiniões dos populares, que se diziam chocados. Isto foi o que disse um deles: "Não é coisa que se faça. 'Tá bem que podia dar-lhe umas lambadas, se ela se portasse mal... mas assim não".
Nem vale a pena comentar estas palavras, tal é o seu nível. No entanto questiono o trabalho do jornalista e do editor da peça. Então as notícias, em especial nestes casos, servem de denúncia da violência e inclui-se uma declaração que é exactamente uma apologia da violência?
Até porque, o mais provável é que, até chegar à corrente, muitas lambadas tenham passado por baixo da ponte.
PS A besta (o marido) foi presa preventivamente e deverá ser acusada de rapto e maus-tratos.
PSS - Contra esta criminalidade não ouvi nenhuma besta fascista rosnar há uns dias no Rossio.
Na maioria dos casos, costumo admitir os meus erros quando os detecto ou me chamam a atenção sobre eles. Por isso mesmo, queria pedir desculpas ao Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, pelo meu comentário em relação à sua visita (de trabalho) ao Uganda, publicado no artigo anterior.
Ele trocou o mais que provável hotel de 5 estrelas na capital do país visitado por 2 noites numa tenda de plástico, entre os refugiados sudaneses no norte do Uganda, para assim chamar a atenção sobre a situação em que vivem e ter uma perspectiva mais próxima da sua realidade.
Sendo ele um alto funcionário da ONU e vendo-se que essa mesma ONU costuma brindar os seus dirigentes com luxos babilónicos à custa do seu limitado orçamento, presumi que ia cumprir os maus hábitos da casa. É bom ver que não foi este um desses casos. Perdoe-me então a precipitação na crítica.
Recentemente, e com vista à próxima Cimeira do G8 (o grupo dos oito países mais industrializados do Mundo) que se vai realizar na Escócia, Tony Blair lançou o desafio do perdão da dívida externa de alguns dos países mais pobres. Nas negociações que se seguiram, ainda antes da cimeira, foi alcançado um acordo com vista ao perdão de mais de 40 mil milhões de euros a 18 das nações mais miseráveis do planeta, 15 das quais africanas.
A medida é meritória, ainda mais quando na lista constam somente países que se têm esforçado por seguir um rumo de reformas democráticas e maior respeito pelos direitos humanos, como sejam os casos de Moçambique, Mali ou Burkina Faso. Desta forma se mostra um "cartão vermelho" a outros Estados como Angola, Haiti ou Zimbabué que, apesar de igualmente falidos, continuam a ser bastiões de ditaduras e corrupção em larga escala. E sem vontade de mudança.
Até aqui tudo bem. O problema é que nestas coisas de diplomacia e economia basta levantar uma pedrinha para se descobrir algo sórdido. Poucos dias após o muito celebrado anúncio do perdão da dívida por iniciativa do governo britânico, veio a público a notícia que, exactamente o Reino Unido tinha, no último ano, vendido mais de 1500 milhões de euros em armamento a alguns países do Terceiro Mundo, alguns deles com graves registos de violações dos direitos humanos. Por isto, os caridosos Tony Blair e Gordon Brown não merecem uma coroa de louros.
Guterres pelos refugiados; Diana contra as minas terrestres; Bono pelo perdão da dívida.
Em geral fico desconfiado quando vejo gente famosa em causas de solidariedade ou de boas intenções. Quase sempre há qualquer coisa na pintura que não bate certo. As causas são louváveis, os modos como são apresentadas é que soam a falso. Alguns exemplos.
Bono, na sua cruzada contra a pobreza, tem sido uma das vozes mais persistentes na luta pelo perdão da dívida externa dos países mais pobres, um problema que constitui um importante entrave ao desenvolvimento. Recentemente, o líder dos U2 reuniu-se com Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia para discutir o assunto. Já durante a presente Vertigo Tour, a banda irlandesa tem feito apelos pela luta contra a pobreza. São bonitos os apelos solidários, mas se eu pudesse fazer uma pergunta a Bono neste momento - uma única - seria: quanto é que os U2 vão gastar em quartos de hotel e limusinas durante a digressão?
É este tipo de atitude que de certo modo me repugna. Como me repugnou ver, há anos, a princesa Diana a abraçar crianças angolanas estropiadas pelas minas terrestres, imaginando que o só seu orçamento em vestuário para a viagem a Angola seria superior ao orçamento anual do centro de apoio aos mutilados de guerra que ela visitou com tanta pompa.
E o nosso mui amado António Guterres, recém escolhido Alto-comissário da ONU para os Refugiados, na sua próxima visita ao Uganda, onde se vai inteirar da situação dos refugiados sudaneses, não deixará de passar algumas noites nalgum hotel de luxo em Kampala, nas aprazíveis margens do Lago Vitória, bem longe do fedor e das moscas dos campos de refugiados no norte do país, onde só deverá ir por algumas horas.
Com isto não quero dizer que quem se (compro)mete com causas solidárias, tenha de passar pelos mesmos tormentos que as pessoas a quem pretende ajudar. É óbvio que não desejava que a princesa Diana fosse para Angola andrajosa ou lá pisasse uma mina. Ou que Guterres tivesse de sofrer malária ou ter a sua família chacinada por soldados sudaneses, para saber o que sofreram e sofrem os refugiados no norte do Uganda.
Só que, como se costuma dizer, à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecer. É que assim, isto parece tão honesto como as dondocas da Lapa, que juntam 5 mil euros num cházinho de caridade pelos pob'zinhos, para o qual cada uma gastou 10 mil no fato de gala Chanel, nos sapatos Prada e na malinha Louis Vuitton.
Há momentos em que somos colocados contra a parede - mesmo que de uma forma não ameaçadora - e que nos obrigam a pensar a fundo na nossa vida. Ontem tive um desses momentos.
Assim que cheguei à sinagoga para a minha aula das segundas-feiras, o rabi veio ter comigo e disse-me com ar sério: "Temos que falar. Sobre o seu guiur (גיור, conversão), como vai ser. Quando é que podemos falar?"
Eu respondi que podia ser em qualquer altura. A aula começou pouco depois. A data da conversa não ficou marcada, mas eu não consegui mais deixar de pensar no assunto. Durante a aula, a que eu tentei prestar o máximo da minha atenção, como sempre faço, as palavras do rabino soavam insistentemente na minha cabeça. "Temos que falar". As palavras e o que podem significar.
Sim, o que podem significar, pois eu não tenho a certeza. Significa que o rabi acha que eu estou preparado para as etapas finais do processo de conversão? Sei que várias pessoas que frequentam as aulas comigo já tiveram a tal conversa com o rabino e por sua recomendação (é assim que as coisas funcionam) deverão apresentar-se perante um Bet Din (tribunal rabínico) em Israel, dentro de alguns meses.
Olhando para algumas dessas pessoas, como a Ana e o João - aquelas que eu conheço melhor -, interrogo-me "como posso eu estar tão preparado como elas?" Não creio que alguma vez estarei mais decidido a ir para a frente com o processo do que estou actualmente. Há muito que deixei de ter dúvidas de que isto é o que realmente quero.
No entanto, não consigo deixar de pensar que, comparando com outras pessoas do grupo - e é impossível não comparar -, eu não mereço estar no mesmo plano. E não o admito por modéstia, que essa é companhia que não costuma andar de mão dada comigo. Simplesmente reconheço que ainda não mereço o prémio. Ainda há tantas coisas que eu não sei e não sei fazer. Estou ainda tão longe do que um judeu deve saber, mas especialmente ser e fazer... Não quero desta forma que todo o processo pareça fácil. Como se bastassem uns meses de aulas. Porque não o é, bem pelo contrário.
Por outro lado, caso eu seja mesmo escolhido para me apresentar perante o Bet Din e acabe por "passar no teste", tenho receio de perder o interesse. Depois de cerca de dez anos de um caminho pessoal, com muitas pedras, buracos e mais baixos do que altos, não quero achar que "já está, não preciso de me esforçar mais".
Hoje, a minha motivação para ir todas as semanas a Lisboa é atingir um patamar que me permita dar os passos definitivos no processo de conversão. E depois? Estou como se fosse um animal em cativeiro, uma ave que, depois de viver tantos anos numa gaiola, não sabe se vai conseguir voar e finalmente sobreviver no mundo para lá das grades.
Ando com estes pensamentos e ainda não tive a tal conversa...
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