Não dão para imaginar as saudades que eu tinha da política-à-portuguesa. A política em Israel não é nada branda nem enfadonha, mas para quem passou seis meses praticamente sem nunca olhar para uma televisão e com pouca vontade para ler jornais, há muita coisa que passou despercebida.
De regresso ao "Rectângulo" vejo que a política por cá continua tão cómica como sempre. O Bloco de Esquerda continua com o seu brilhante e insuperável papel de animador do Grande Circo da Assembleia da República.
Uma das últimas pedradas do BE foi contra o Cardeal Patriarca de Lisboa. Sim, eu também concordo que não se deviam dar tantas honrarias e demonstrações de vassalagem ao Dom José, neste caso na tomada de posse do novo Presidente da República, Cavaco Silva (outro de que já tinha saudades).
Mantendo as distâncias devidas entre Clero e Nobreza, não me oponho que convidassem o cardeal, mas que não se extraviassem os convites para o imã, o rabino, o guru indiano, os bispos das IURDs, Manás, Adventistas e afins e até mesmo a mãe-de-santo e o macumbeiro africano que têm os seus fiéis seguidores. Isso sim seria democrático e imparcial.
É bom encontrar os cromos do costume...
O regresso a Portugal apresenta-se-me com uma série de desafios. O primeiro deles é manter o cumprimento das mitzvot (preceitos judaicos) num ambiente com muito pouco de Judaísmo. Ao mesmo tempo que tento seguir os meus princípios, procuro não ofender as pessoas que me estão próximas, desconhecedoras das regras judaicas e dos seus intrincados detalhes e significados.
A primeira grande luta foi com a comida. Alimentação casher e cozinhas onde essa regra é cumprida à risca são a norma em Israel. Cá, pelo contrário, só usar a louça comum levanta uma série de problemas. Ao chegar a casa, a minha mãe apresentou-me, orgulhosa, um bolo que havia preparado para festejar o meu regresso. Vi a desilusão nos seus olhos quando lhe disse que não o podia comer. Custou-me - não tanto pelo bolo, mas mais para não a ofender, - mas tive de manter a minha posição.
Já estava à espera de uma reacção assim, por isso a havia avisado de antemão para não fazer conta comigo para o jantar. Todavia, como me poderia lembrar que ela iria fazer um bolo, coisa rara lá em casa?! No dia seguinte, dediquei-me durante várias horas a "casherizar" tachos, pratos e talheres para usar durante a minha curta estadia.
Também o uso permanente da kippa levantou sobrolhos a princípio. "Agora estás em casa, não precisas de usar isso". Já os tsitsit, cujo aspecto visível é uma série de fiozinhos brancos pendurados nas calças, surpreendentemente, não causaram reacção.
Fiquei sem saber o que dizer quando a minha mãe me disse que eu "estava mudado". Especialmente tendo-o dito de uma forma não muito agradada, se bem que não exactamente hostil, mas quase como se já não me reconhecesse, ou não me conhecesse bem. Parece que tinha chegado um estranho a casa...
Estranheza é exactamente a forma como encaro quase tudo à minha volta. Já percebi que as pessoas - família e amigos - me vêm de forma diferente, porque eu, realmente, me comporto de forma diferente. Os que me conhecem tomam-me como alguém muito falador e extrovertido entre os amigos mas, ao contrário de antes, não estou particularmente conversador. É que, simplesmente, não sei o que hei de dizer aos outros para que me entendam de imediato.
Em termos temporais passaram apenas seis meses, mas foram seis meses de mudanças muito profundas. Ao chegar, parece que passaram anos. O meu mundo de hoje é radicalmente diferente daquele em que vivia antes de partir, o que dá a impressão que cheguei a outro planeta. O planeta Diáspora.
Já estou em Portugal, depois da minha longa estadia em Israel. Que diferença! Já estava acostumado - bem acostumado - com a rotina da vida na yeshiva, a integrar-me com o modo de vida israelita, especialmente no ambiente de Jerusalém e agora, pelo menos durante mês e meio, vou ter de reaprender o modo de vida português.
Até agora não saí durante muito tempo à rua - somente o suficiente para a viagem de taxi entre o aeroporto e a casa de uns amigos onde passei a primeira noite, e uma ida ao banco para resolver uns problemas com o telemóvel.
Por um lado gostei de voltar a ver os portugueses na sua vida diária, de ouvir de novo as rádios portuguesas no meu radiozinho de bolso mas, por outro lado, não gostei de não me sentir à-vontade, andando pela rua com tsitsit e kippa. Se bem que a kippa que uso agora passe por um gorro apenas um pouco estranho, os tsitsit são indisfarçáveis no que toca à estranhesa! Sim, eu sei que a solução é andar com eles dentro das calças e não para fora... E voltei a ter a sensação desagradável de ser observado.
Até à pouco mais de um mês, ainda em Israel, estava furioso com a perspectiva de ter de ficar no país para me ser permitido acabar o processo de conversão. Havia ido para Israel com a ideia de despachar o processo em 6 meses e voltar a Portugal, e fazer a minha vida como membro do povo de Israel por cá... A certa altura, alguém meteu à força no pacote a obrigação de permanência em Israel. Que fúria que senti então! A distinção entre israelita e judeu é para mim muito clara, pelo que a imposição de tornar-se israelita junto com o tornar-se judeu, era a meu ver inaceitável.
No entanto, aos poucos, no final da estadia, usando a minha habitual atitude pragmática, acabei por perceber que não me queda outra, se quero viver mesmo como judeu.
Sem dúvida que admiro os raros "resistentes" que em Portugal teimam em viver como judeus autênticos. Não aqueles que se afirmam judeus, mesmo sendo-o realmente de acordo com a Lei Judaica e sendo membros reconhecidos das várias comunidades, mas aqueles que realmente se comprometem a viver seguindo essa Lei. E esses são uma minoria.
Em Israel é, para quem quer viver como judeu, tudo muito mais fácil. Comida casher, o cumprimento de Shabbat e a educação judaica das crianças são as regras básicas. Por cá, cada uma destas coisas apresenta uma série de obstáculos que requerem tarefas hercúleas para se transporem. E nem sempre se ultrapassam da forma ideal.
Olho com espectativa para os próximos dias, para ver como vou enfrentar as minhas obrigações religiosas neste ambiente pouco favorável.
Nota: o significado da kippa e dos tsitsit, dois símbolos de um homem judeu.
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