Terça-feira, 27 de Março de 2007

De costa a costa

Israel é um país muito pequeno. Em termos comparativos, é mais pequeno que o Alentejo. Apesar disso, a variedade de paisagens é impressionante. Desde o enorme deserto do Neguev, a sul, que constitui mais de metade da área do país. Às montanhas do centro - verdejantes a norte e secas a sul de Jerusalém. E a Galileia, o norte do país. Verde, com colinas e vales férteis.

Os israelitas, desde os pioneiros judeus que chegaram desde o século XIX, apreciam muito as caminhadas ao ar livre. É comum encontrar grupos de mochileiros percorrendo as muitas áreas de paisagem protegida distribuídas por todo o território. Por isso, trilhos bem assinalados para caminhantes existem por todo o lado.

No início das férias da Páscoa Judaica, a Yeshivat HaKotel organizou um passeio para os estudantes estrangeiros: uma caminhada de três dias pela Galileia. Conhecido como Yam le'yam o trajecto liga o Mediterrânico ao Mar da Galileia (conhecido localmente por Kinneret). São 68 quilómetros de caminhada.


De um mar ao outro, de mochila às costas.

Começámos em Achziv, uma praia rochosa poucos quilómetros a sul da fronteira libanesa. Rumando a oriente, passámos primeiro por extensas plantações de bananeiras e abacateiros. Um detalhe chamou-me à atenção: os sinais informativos escritos em hebraico, árabe e... tailandês! A razão para isso é o facto de muitos dos trabalhadores das plantações serem naturais da Tailândia.

Leitos secos de ribeiros, cheios de grandes calhaus rolados foram alguns dos trilhos mais difíceis de transpor. Mais para o interior, os ribeiros estavam em pleno e com cuidado, aproveitando as pedras alinhadas, havia que atravessá-los, procurando não molhar os pés. Aos poucos, entrámos nos vales cobertos de florestas, até Monfort, um castelo medieval construído por Cruzados franceses. Aí o percurso torna-se acidentado e a trilha passa a ser um estreito carreiro de pedras escorregadias entre uma parede vertical e um precipício. Impróprio para os que sofrem de vertigens.

Por vezes tive de acalmar um companheiro mais nervoso com medo das alturas. A cada passo certificava-se que eu estava bem próximo dele. Ora segurando-o pela mão, ora incentivando-o a continuar.

No final do primeiro dia, acampámos nos arredores da cidade de Maalot, num descampado a mais de dois quilómetros daquele que deveria ter sido o nosso primeiro acampamento nocturno. Durante a noite, a cada meia hora revezavam-se grupos de dois na guarda do acampamento contra eventuais ladrões. Pela primeira vez na vida, empunhei uma arma, apesar de não saber atirar e de a arma em questão ser tão antiquada que creio mesmo que só serviria para matar pardais. De qualquer forma, era só mesmo para intimidar alguém com intenções menos nobres...

O segundo dia começou tarde. Devido à distância em relação ao ponto programado para a partida, a organização resolveu levar-nos de carro até ao local. Grupos de três, a cada 7 minutos. Eu fui dos últimos a ser levado, mais de hora e meia depois dos primeiros terem partido. Um atraso que teria de ser compensado por um passo mais rápido durante a caminhada do dia.

O percurso do segundo dia era o mais agradável. Vales belíssimos com ribeiros tranquilos e algumas cascatas. Por várias ocasiões passámos por vacas pachorrentas, que pastavam indiferentes à nossa invasão do seu território. Quase no final, o trilho incluía a subida à segunda montanha mais alta de Israel, o Monte Meron. E de lá, uma descida - apressada para aproveitar as últimas horas de sol do final da tarde - até ao acampamento, situado a poucos metros do santuário onde está sepultado o Rabbi Shimon Bar Yohai, um famoso rabino que viveu há quase 2000 anos. Consegui chegar e montar a minha tenda ainda nos últimos momentos de luz.

Apesar de todos estarem munidos de mapas, um grupo de quase uma dúzia de caminhantes perdeu-se da trilha e terminou numa aldeia drusa, a 7 quilómetros do local correcto. Druza, por sorte, pois se fosse uma aldeia árabe, algo de trágico poderia ter-lhes acontecido. É que em muitas localidades árabes da Galileia, os judeus não costumam ser bem recebidos.

O último dia, haviam-nos prometido, seria o mais fácil. Apesar de a distância ser de 28 km, enquanto nos dois dias anteriores havia sido de 20 km por dia, o percurso seria «apenas descer uma montanha». Com esta descrição, muitos de nós, apesar de maltratados pelas condições do caminho já percorrido, ficaram convencidos e decidiram não desistir.

No entanto, aquilo que era "apenas" a descida de uma montanha, revelou-se o mais complicado dos trajectos. Carreiros estreitos e escaladas à beira do abismo. Um passo em falso e adeus... Matagais de urtigas e canaviais. Pernas e braços arranhados. Isto tudo debaixo de um sol que, ao contrário dos dias anteriores, se fazia sentir forte. Na pausa a meio do caminho, as reservas de água de boa parte do grupo já se haviam esgotado.

A solução foi ir até à cidade mais próxima comprar garrafas de água para todos. Era impossível caminhar os restantes 11 quilómetros "a seco". No final do dia, apenas alguns chegaram ao destino escolhido. Muitos tiveram de ser recolhidos pelo carro de apoio, espalhados no trajecto. Para todos, numa praia do Mar da Galileia havia um churrasco à espera.

Mais do que um desafio físico extremo - que eu não sei se me atreveria a repetir - o Yam le'yam foi uma experiência humana inexcedível. A camaradagem entre todos foi extraordinária. Actos como esperar pelos companheiros que ficavam para trás, dar uma mão para ajudar a subir um trilho mais difícil, partilhar da comida e da água, palavras de encorajamento, avisar sobre algum perigo do caminho, foram constantes. Cada um teve a perfeita consciência de que não poderia continuar sozinho.

Existe uma distância (a todos os níveis) entre os alunos americanos e ingleses e os do grupo de língua portuguesa da yeshiva. No final, tenho a certeza que ficámos todos mais unidos, independentemente do grupo a que cada um pertence.

publicado por Boaz às 17:17
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Segunda-feira, 12 de Março de 2007

O valor do tempo

Há quase seis meses, em meados de Setembro, mudei-me para a Yeshivat Hakotel, na Cidade Velha de Jerusalém, uma das mais importantes yeshivot de Israel. A início, e apesar de já haver passado quase nove meses no Machon Meir, outra yeshiva de Jerusalém, a perspectiva de estudar na HaKotel, me fazia pensar se estaria realmente à altura de tal desafio.

Nos nove meses no Machon Meir havia estudado no Departamento Espanhol e Português, com um contacto muito limitado com a língua hebraica e ainda menos com o estudo profundo do Talmude Babilónico, uma das obras mais importantes do Judaísmo, que serve de base à lei judaica.

Em princípio deveria ter entrado para a nova yeshiva apenas em Dezembro, quando estava prevista a chegada de alguns estudantes brasileiros que seriam os meus companheiros de estudo. Porém, inesperadamente, no início de Setembro do ano passado, o director do programa em português da Yeshivat HaKotel anunciou-me que me poderia mudar em meados do mês, três meses antes do previsto.


Yeshivat Hakotel. O estudo de Torah vale por todos os preceitos

A chegada foi algo próximo da tragédia. O quarto que nos foi determinado era ocupado por um monte de lixo, no meio do qual viviam 3 estudantes - dois israelitas e um inglês. Habituados e auto-obrigados a viver na ordem, tanto eu como Michel, o meu novo companheiro de quarto e de estudos brasileiro, passámos as primeiras horas daquela tarde de 17 de Setembro de 2006 a limpar o quarto. O chão mal se via com tantas garrafas vazias ou meias cheias deitadas por ali. Quando, algumas horas mais tarde chegaram os outros 3 ocupantes do quarto, não puderam reconhecer o lugar.

Àquele que eu percebi ser o "bagunceiro" principal, entreguei um ultimato, a fim de manter a ordem: "se eu encontrar uma garrafa ou uma peça de roupa suja no chão, não interessa de quem seja, prometo que a ponho em cima da tua cama!". A ameaça resultou, e daí até à saída de Sam, o quarto manteve-se impecável. Uma prova que, por vezes, uma posição inicial de força ajuda a instaurar a paz e a ordem...

O outro choque, bem mais forte que o da desordem dos aposentos, foi ao nível dos estudos. Iríamos estudar entre as 9 e as 23 horas, de Domingo a Quinta e na maior parte, em hebraico. O foco principal do estudo seria a secção Shabbat do Talmude Babilónico - um conjunto de várias dezenas de livros escritos em hebraico antigo e aramaico (uma língua hoje extinta, próxima do hebraico), entre os anos 200 e 500 da nossa era.

Na primeira semana, apesar de passarmos várias horas ocupados com o Talmude, Michel e eu avançávamos apenas algumas linhas na folha da Gemará. A pouca experiência no assunto, aliada à debilidade do hebraico e ao completo desconhecimento do aramaico eram para nós obstáculos quase intransponíveis para o progresso nos estudos. Por isso tudo, as conclusões a que chegávamos, ao fim de várias horas de estudo eram, invariavelmente equivocadas. Ainda mais, a nossa entrada na Gemará havia sido um autêntico "mergulho de cabeça", com estudo por livros em que o hebraico não contém nem os sinais das vogais nem sequer a pontuação das frases.

Todavia, aos poucos, a repetição das expressões, a ajuda do dicionário e o uso cada vez mais frequente do hebraico no dia a dia, fizeram-nos avançar de tal modo, que alguns meses depois, já éramos capazes de ler várias linhas sem consultar o dicionário, perceber as ideias, confrontá-las e tirar as conclusões.

O crescimento ao nível espiritual e de estudos, nestes seis meses é, no entanto, impossível de calcular. A aquisição do hábito e da capacidade (e mesmo da sensação de necessidade) de estudo intensivo e ao nível individual talvez sejam os melhores resultados destes meses.

Há pouco tempo Michel comentava-me que quase não se reconhecia após os meses que havia passado na yeshiva. As mudanças haviam sido demasiado fortes e rápidas. Para Michel e os outros brasileiros que entretanto chegaram e após uns meses voltaram para o Brasil, o desafio maior é manter um caminho de estudo e de prática religiosa, ao mesmo tempo quando estão imersos num ambiente tão hostil a esse mesmo estudo e prática. As bases adquiridas pela sua passagem pela Yeshivat HaKotel serão uma boa ajuda na persistência nesse caminho.

Por mim, continuarei por mais algum tempo, no mínimo uns meses, ou mesmo uns anos, a estudar. Ainda não estou seguro com que objectivo concreto me manterei no estudo. No entanto, o estudo de Torá por si mesmo, sem qualquer segunda intenção, é o nível mais elevado de dedicação à descoberta da palavra Divina.

Ao olhar para trás interrogo-me: é possível saber o valor de seis meses?

publicado por Boaz às 11:45
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Sexta-feira, 9 de Março de 2007

A corrida às armas

"A América e a Grã-Bretanha, gritou o [Presidente iraniano] Ahmadinejad perante dezenas de milhar de pessoas, «podem ter ganho a II Guerra Mundial, mas eles definitivamente perderão a III Guerra Mundial» porque «O Irão ganhará a próxima guerra e a América será derrotada». O minúsculo espalha-brasas iraniano de 49 anos é conhecido por acreditar que a morte e a destruição generalizadas serão o elevar da cortina para um Armagedão Muçulmano - que terá lugar durante a sua vida. Newt Gingrich, possível candidato republicano à presidência americana, diz que a terceira guerra mundial já está em curso."

Excerto de um artigo do Washington Times, referido no Haaretz.

Em Israel, todos os dias os jornais estão cheios de notícias sobre a ameaça nuclear iraniana. Os principais jornais, há meses que têm mesmo secções especiais sobre o assunto.


T-shirts como esta encontram-se nos mercados de Jerusalém

Muitos analistas militares falam numa muito provável nova guerra com o recém (e mais fortemente) rearmado Hezbollah, na qual a Síria tomará de certo um papel mais activo do que apenas de abastecedor da guerrilha xiita libanesa.

A estratégia israelita tem poucas opções favoráveis. Em 1981, quando a ameaça nuclear contra Israel provinha do Iraque, a Aviação Israelita bombardeou o reactor de Osirak. Ora, uma acção desse tipo contra as instalações nucleares iranianas é tão complexo em termos militares, que dificilmente poderá ser posto em prática apenas com uma acção isolada de Israel. Primeiro, o Irão fica mais longe de Israel e é muito maior que o Iraque. Depois, pela dispersão dos locais dessas instalações, algumas delas subterrâneas. Mesmo com um ataque israelita que atrasasse o projecto nuclear iraniano por alguns anos, estaria aberta a porta à retaliação iraniana na primeira oportunidade após aquisição de um engenho nuclear.

A ONU, a Europa e os EUA estão tão divididas no que fazer em relação à nuclearização do regime dos Ayatollahs que Israel apenas está certo de contar consigo mesmo nesta batalha.

Com bomba nuclear ou sem ela, sabidas as estreitas relações entre o Hezbollah, a Síria e o Irão, o próximo Verão poderá ser crucial no futuro do Médio Oriente.

publicado por Boaz às 10:10
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Quarta-feira, 7 de Março de 2007

Narcisista q.b.

Há uns dias ao analisar a quantidade enorme de fotos que tirei em Israel nos últimos (quase) dois anos de permanência neste país, verifiquei a quantidade de caras diferentes em que apareço nas ditas fotos.

Decidi fazer uma síntese das melhores e enviá-la aos amigos e familiares em Portugal.

Em tom de postal, publico também aqui a tal imagem.

De Israel, com amor e loucura.

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publicado por Boaz às 12:00
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Segunda-feira, 5 de Março de 2007

O meu pé esquerdo

No passado Domingo festejou-se Purim em Jerusalém. Purim é uma festa judaica que recorda o milagre da salvação dos Judeus da Pérsia, do decreto de morte de todos os Judeus do império persa, pelo malvado vizir Haman.

(Interessante como menos de 2500 depois, da mesma Pérsia entretanto chamada Irão se levanta outro Haman, na pessoa do presidente Ahmadinejad).

É costume as pessoas mascararem-se (não sei se por influência do Carnaval), fazerem churrascos e, especialmente, beber até cair.

Eu, não bebi, mas caí. E o resultado foi uma luxação no dedo grande do pé esquerdo. Graças a Deus, não foi fractura.

Como as dores não paravam e o dedo estava inchado e roxo (bem madurinho, pronto para cair), fui ao Maguen David Adom (o equivalente israelita da Cruz Vermelha). Aí recomendaram-me descanso por dois dias.

publicado por Boaz às 11:57
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Galeria de imagens da experiência como voluntário num kibbutz em Israel.


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