Há sempre uma primeira vez, para (quase) tudo. Desta vez, dei em assassino. Bem, pelo menos é a fama que, pelos vistos e sem ter dela a mínima consciência, me acompanhava.
No último Sábado à noite, em Lisboa, regressava da sinagoga para a casa onde passei o Shabbat, com mais dois membros da comunidade judaica lisboeta. Quando atravessávamos a passagem subterrânea da estação de metro no Marquês de Pombal, na altura em que subíamos as escadas de um dos lados da Praça, ouvimos: "Deviam ter vergonha. Mataram a Jesus!"
Passámos e não respondemos. Uma das pessoas que me acompanhava observou pouco depois: "Foi a primeira vez. Nunca me tinha acontecido".
Mantendo o hábito que trouxe de Jerusalém, eu levava a minha kippa bem à vista, ao contrário do que é normal entre os Judeus de Lisboa, que têm o costume de ocultar os símbolos externos do seu Judaísmo. Um dos homens que me acompanhava levava um chapéu negro, o outro, um boné. Assim, deve ter sido pela clara exibição da minha kippa que fomos reconhecidos como judeus.
Pelo tom pastoso da voz do "acusador" - das duas uma - ou tinha acabado de sair do dentista ou estava mesmo bêbedo. Faz-me lembrar um episódio ocorrido com Mel Gibson o qual, durante uma "operação stop" da polícia também vomitou uma série de vitupérios anti-semitas contra o agente.
Há um provérbio judaico que diz: "entra o vinho, sai o segredo". Nestes casos, por via do álcool, se revelam os sentimentos de cada um. A acção do vinho faz cair as máscaras e expõe os homens na sua forma mais autêntica. Sob o seu efeito não há politicamente-correcto, etiqueta ou a básica boa educação.
O judeu errante, de Gustave Doré.
Pela sua imperdoável culpa na morte de Jesus, o judeu foi condenado a vaguear eternamente.
A acusação de deicida atribuída aos Judeus foi, nos últimos dois milénios, a desculpa para toda a espécie de humilhções e massacres. Conjugada com outras acusações e mitos surgidos durante os séculos. A arma de destruição maciça perfeita para atrair as massas populares a dar uma mãozinha na empreitada de Inquisições, sucessivas expulsões, pogroms. E a Shoá. O recorrente argumento tornado válido para perpetuar um ódio secular e nunca ultrapassado.
Apesar deste episódio e da possibilidade de acontecer de novo, não deixei, nem penso deixar, de andar com a minha kippa bem à vista. Seja em Lisboa onde, entre a multidão, até posso passar despercebido, seja na Batalha, onde a maioria das pessoas me conhece.
É verdade que o Portugal de hoje está, felizmente, muito longe do país anti-semita de outrora. Os ataques contra judeus são praticamente inexistentes entre nós, ao contrário do que acontece em países como a França, a Bélgica ou o Reino Unido.
Todavia, um caso destes, mesmo isolado, não deixa de revelar, nas entrelinhas, o tal bichinho do caruncho normalmente escondido que, de tempos a tempos, fura até à superfície.
Quando, em Israel, dizia convicto que em Portugal não existe anti-semitismo, sempre alguém, pouco convencido disso me dizia que ele apenas está oculto, mas está sempre presente. E que sempre se encontra alguém que não aceita que o judeu simplesmente continue a existir.
Já passaram 2 semanas desde que cheguei de Israel.
Uma estadia fora do ambiente da yeshiva, já tem as suas consequências. A primeira é ao nível do estudo. Todos os dias, não sinto a obrigação de me levantar cedo para ir para as aulas na yeshiva. E estudar sozinho também não é lá muito aliciante. Mas vou estudando, pouco a pouco, alguma coisa.
As distracções são inúmeras, mesmo que já tenha deixado de ser viciado na televisão. No entanto, confesso que retomei o hábito de ver as notícias e algumas séries e documentários. E, acho que para bem, decidi não ter Internet em casa. Sempre é menos uma razão para não me deitar tarde e não passar muito tempo à frente do computador. Mas arranjei um espaço alternativo, para quando a Internet se torna mesmo indispensável. E como o tal local alternativo fica a vários quilómetros da minha casa, até aproveito para fazer exercício, na minha já velhinha mas saudosa bicicleta.
Outros dos problemas de estar fora de Israel é ao nível da oração. É que, tirando no Shabat, também não tenho normalmente o ímpeto de me levantar cedo para rezar. É verdade que rezo, mas pelo menos as orações da manhã, faço-as normalmente, fora de horas. E claro, exceptuando quando rezo na sinagoga, não tenho a oportunidade para rezar com minyan (conjunto mínimo de 10 homens judeus com mais de 13 anos, a partir do qual é possível fazer o serviço religioso completo).
A questão da comida casher, normalmente um dos problemas mais bicudos a resolver por judeu que está fora de um ambiente judaico, até não tem sido assim tão difícil de solucionar. Além da habitual "casherização" da cozinha que tive de fazer logo à chegada a minha casa, tenho a sorte de a família ter deixado de comer carne em casa, reservando os seus apetites na alimentação carnívora para a saída domingueira ao restaurante.
De qualquer forma, uma ida ao supermercado levanta o problema de ter de verificar a lista dos ingredientes de cada coisa que compro, desde as bolachas, aos cereais de pequeno-almoço, aos iogurtes. Há dias, quando me preparava para comer a usual taça de cereais antes de dormir, verifiquei que afinal os corn-flakes não eram casher. Bolas, uns emulsionantes proibidos na lista de ingredientes! Felizmente, descobri a tempo, mesmo antes de ter vertido o leite na taça, mas estragaram-me a refeição... Ainda não ouviram falar da lecitina de soja???
Mais tarde contei o facto à minha mãe, para a avisar de que já não iria comer dos ditos cereais. Ela veio com uma tirada sarcástica: "Olha, vê lá se vais para o Inferno!" Sinceramente, não me posso queixar da sua falta de colaboração com os meus novos e (a seu ver) complicados hábitos, mas vai e volta, lá se sai com uma destas...
Ao contrário do que acontece em Jerusalém, é normal ser confrontado em Lisboa com publicidade pouco recatada. A cada passo, parecem saltar das paragens de autocarros ou em outdoors, imagens de mulheres seminuas. Tenho de admitir que, antes de ir para Israel eu nem dava grande importância a tais cartazes, pois obviamente que estava acostumado a ver esse tipo de publicidade em Portugal. Um ano fora, ainda mais, passado numa cidade como Jerusalém, tão sóbria na questão dos corpos menos cobertos, faz com que hoje pareça muito mais impressionado com esse tipo de imagens.
Acerca disto, queixava-se um amigo brasileiro da yeshiva, entretanto regressado ao Rio. Pouco tempo depois da sua chegada ao Brasil escreveu no seu primeiro e-mail: "Eu não tinha ideia que as pessoas no Brasil andavam peladas na rua!". Em Portugal não é tanto assim, mas anda bem longe do recato de Jerusalém.
Cheguei a Portugal dia 29 de Abril. Para uma estadia que deverá prolongar-se por dois meses. Até agora, e apesar de ter passado um ano fora do país, não vejo grandes diferenças. Tudo aparenta continuar igual... Toda a gente a quem pergunto "Como está?" me responde com um conformado "Está tudo na mesma..." As reticências notam-se bem no tom da voz. Parece-me que o desânimo português segue realmente inalterado.
Já começo a sentir as dificuldades de estar fora de Israel. Ter de casherizar a cozinha, para a adaptar às minhas regras alimentares. Não ter horas de estudo específicas. Só para começar...
A próxima surpresa será decerto na altura do regresso à sinagoga de Lisboa e às memórias que ela me evoca...
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