A yeshivá está de férias. Nos últimos dias de aulas e nas duas primeiras semanas de interrupção, recebemos um grupo de cerca de uma dúzia de rapazes do Bar Ilan, um colégio judeu do Rio de Janeiro. Apesar de provenientes de famílias judias e frequentarem um colégio judeu, a maioria deles não estavam habituados a um ambiente religioso. Antes de virem para a yeshiva, passaram vários dias a passear por todo o Israel.
Foi tarefa dos alunos de língua portuguesa da Yeshivat HaKotel recebê-los e tentar incutir-lhes um pouco mais de Judaísmo prático, para lá do Judaísmo cultural ao qual estão mais ligados.
A mim couberam-me dois rapazes tranquilos, Nahum e Moti (nomes fictícios). O animador do grupo pediu-me para estudar mishnayot com eles. Tarefa aparentemente fácil para alguém habituado ao ambiente religioso e ao estudo das fontes judaicas. No entanto, para eles mesmo o nível básico do estudo estava muito para lá do seu interesse.
Ao fim de três mishnayot, e não tendo o mínimo feedback dos meus companheiros de estudo, decidi fechar o livro e pedir sugestões de temas para estudarmos ou apenas para conversarmos. Moti disparou uma série de perguntas: "O que é o demónio? O demónio existe?"; "Porque é que Deus permitiu o Holocausto?"; "Porque é que todo o mundo odeia os judeus?". Caramba – pensei – estas são perguntas para rabinos, não para mim! Tentei responder às suas questões o melhor que sabia. Afinal, já estudo na yeshiva há mais de um ano, já tenho de ter algum tipo de resposta até para estas perguntas bicudas.
Dois dias depois, fizemos uma vista ao Yad Vashem, o Museu Memorial do Holocausto de Jerusalém. Como não poderíamos entrar como um grupo único, fomos divididos em pares ou trios: um aluno da yeshiva para um ou dois dos rapazes do colégio. De novo calhou-me o Nahum. Esta seria a minha quinta visita ao Museu, e a segunda como guia.
Nós os dois fomos os primeiros a entrar. Tentei dar-lhe uma perspectiva geral do museu e da história que ele encerra. Obviamente que Nahum já vira muitas das imagens e ouvira histórias como as que são mostradas no Yad Vashem, mas ficou impressionado pela presença de objectos autênticos nas várias salas do museu. Candeeiros públicos, bancos de rua e pedras da calçada verdadeiros numa reconstituição de uma rua do gueto de Varsóvia. As cruas fotos de um massacre de judeus numa aldeia do Leste da Ucrânia. Uma grade sobre a qual eram incinerados cadáveres no campo de concentração de Majdanek. Aos poucos, todos os outros companheiros de visita nos foram ultrapassando, e acabámos por ser os últimos a terminar a visita. Já na praça do Museu, encontrámos o resto do grupo reunido a rezar a oração da tarde. Como se sentiriam Nahum e os outros rapazes a rezar depois de visitar um local como aquele? Afinal, a pergunta deveria repetir-se vezes sem conta: "Porque é que Deus permitiu o Holocausto?".
Apesar de já ter visitado o museu por várias vezes, descobri coisas que nunca tinha visto. Um pequeno placard contava a história de cerca de 2000 judeus polacos convertidos ao Cristianismo e que, mesmo assim, foram enclausurados no gueto de Varsóvia e finalmente deportados. E sem qualquer distinção de fé, gaseados em Treblinka como todos os seus companheiros de clausura.
Dias depois, os animadores do grupo resolveram mostrar um vídeo-clip de uma canção israelita, "Chazak amenu" – Forte é o nosso povo. Mostrava imagens de Israel e manifestações pró-Israel ocorridas em vários países durante os anos da Intifada, quando de todo o Mundo choviam críticas a Israel. Demonstrava que, em tempos de infortúnio, o Povo Judeu se une, independente das suas diferenças. Religiosos e seculares, ortodoxos e reformistas, de Israel e da Diáspora. Unidos à força pela ameaça externa. Voltei a recordar a história dos tais judeus que renegaram a fé de Abraão e que mesmo assim não tiveram melhor sorte que os outros no gueto.
Reparei que nestes dias, Nahum, habitualmente pouco interessado, se mostrava mais concentrado durante as horas de reza.
Não sei que impacto terá a visita do grupo a Israel e o que levarão para o Brasil, para lá de algumas dezenas de fotos e recordações de turista para a família. Mas se depois desta experiência, todos eles se casarem com mulheres judias e assim fizerem frente à tendência de assimilação dos judeus fora de Israel, já terá valido o esforço. É que essa é, nas últimas décadas a maior ameaça ao Povo de Israel.
Gostava que de Portugal viesse um grupo de jovens para viver o mesmo tipo de experiência cá em Israel. Só é preciso um patrocinador e vontade da comunidade.
Tratar de papelada é um pesadelo em qualquer lugar. A burocracia é uma coisa tão implantada no cerne das sociedades modernas que é difícil imaginar até um qualquer processo de tirar uma certidão, documento, segunda-via, licença, escritura e afins sem horas intermináveis de espera nalguma secretaria.
Em Israel a burocracia é lendária, ultrapassando de longe a montanha burocrática portuguesa. É de tal modo pesada e ineficiente que o mais aconselhado é levar um bom livro e ao menos uma garrafa de água (para não falar de um farnel) quando é necessário tratar de algo nas oficinas burocráticas.
Passar do assunto de um ministério para outro, é como passar para um outro país, pois parece não existir qualquer coordenação de serviços. Se no primeiro caso pedem uma dúzia de documentos, provas e certidões, no segundo voltam a pedir tudo de novo, sem se importarem que o serviço anterior já ter dado o aval ao avanço do processo. E nunca, nunca, se fie na lista de coisas que lhe dizem para levar para a repartição seguinte. É que sempre lhe pedirão alguma coisa que falta. Por isso, leve toda a tralha burocrática que acumulou nos últimos anos. E mesmo assim sem garantias...
Nos serviços, ninguém parece saber muito bem como funcionam os trâmites. Cada um faz as coisas à sua maneira. Se acontecer uma secretária topar a conversa na mesa ao lado, até é capaz de perguntar: "O que é estás para aí a dizer? Não é nada disso! É preciso isto e aquilo e aqueloutro". E lá começa uma tão típica discussão entre os burocratas. A secretária intrometida contra a que levou com o selo de incompetente, cada uma a reclamar a razão para si. E o infeliz do utente a amargar.
Há também a recorrente pausa da secretária para o café e o cigarrinho, sem hora para terminar. Independentemente de a sala de espera estar apinhada de gente. Uma multidão nervosa e suada, no abafo não disfarçado pelo ar condicionado. E a gritaria dos bebés nos carrinhos.
Se a coisa ficar feia, sempre se pode usar a técnica do berro e do murro na mesa. Pode não ajudar nada, mas a secretária fica logo a saber que o utente que tem pela frente não é um tolo. Para bruto, bruto e meio é uma máxima a ter em conta naquela altura.
Ah, e isto tudo, é claro, só acontece se os serviços estiverem a funcionar. O que, com a onda de greves a varrer o país, nunca se sabe. Pode acontecer, terminar de tratar de uma coisa aqui e depois ficar encalhado além, por causa da greve, que nunca tem data para terminar. Só à noite, no telejornal, saberá se vai ser amanhã que poderá voltar a amargar com as filas de espera, os apertos e a fantástica simpatia do funcionário público local.
E prepare-se para ouvir que ainda falta a porcaria de um qualquer papel que a senhora se lembrou agora de pedir.
Nota:Actualmente ando na senda de tratar da papelada para obtenção da cidadania israelita. Apesar de já ter passado por todo o processo para a imigração, isso parece não valer nada e tudo volta ao princípio. Manhãs inteiras gastas no Ministério da Imigração e especialmente no tenebroso Ministério do Interior. A última coisa que se lembraram foi pedir-me uma certidão de nascimento. A data e local que constam no passaporte, no documento de imigrante, e nas trinta declarações que já assinei parecem não provar nada. Temo que alguém pense que eu afinal não nasci no dia 24 de Março de 1977 em Leiria, mas fui clonado nalgum laboratório científico da ex-União Soviética. Ou então que terei nascido de um repolho...
Numa pesquisa recente na Internet encontrei no sítio da revista Foreign Policy uma série de textos de activistas e pensadores sobre a situação actual do nosso Mundo. O mote apresentado a esses pensadores, publicado na edição de Maio/Junho de 2007 foi apresentado como "21 soluções para salvar o Mundo". Implementação da democracia, respeito pelos direitos humanos, leis de mercado tendencialmente justas, alternativas energéticas, mudança de políticas ambientais para travar/reverter o aquecimento global, luta contra a pobreza ou acesso à educação, eram alguns dos gigantescos desafios para os quais apresentaram ideias.
Por exemplo, o ex-campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, hoje convertido em activista político (e grande opositor de Vladimir Putin) propôs a assinatura de uma Magna Carta global que substituísse a caduca Organização das Nações Unidas. Afinal, como observa Kasparov, "terroristas e ditadores são recebidos com cortesia na arena da diplomacia, apesar do seu total desprezo, e até ódio pelo que representa a civilização ocidental."
Sendo a ONU uma organização onde democratas e tiranos são colocados no mesmo nível do palanque, e onde, para vergonha universal, os primeiros se deixam – em grande parte por via dos seus interesses em matérias-primas – manipular pelos segundos e fecham os olhos a gritantes atrocidades, a Magna Carta de Kasparov teria como valor absoluto a vida humana, em vez do território, a ideologia ou o comércio.
O escandaloso fosso entre os ricos e os pobres (só para que conste, Portugal é o segundo, entre os países desenvolvidos onde esse fosso é maior, logo atrás dos EUA) poderia ser atenuado por uma lei que tornaria realidade a máxima de Robin dos Bosques. Não sob a forma de assaltos as carteiras mais recheadas, mas leis que, de princípio limitariam a acumulação de riqueza. Actualmente, a absoluta e aparentemente intocável liberdade de mercado permite por um lado uma acumulação de riquezas sem limites, por outro, uma implacável submissão à lei do mais forte.
Assim, naquilo a que chamou "o embaraço da riqueza", o professor Howard Gardner, de Harvard, propõe um limite ao enriquecimento individual. Afinal, para que faz uma pessoa com os seus lucros anuais de 200 milhões de dólares? Como pode o Mundo ser justo quando há empresários que ganham no final do ano, o equivalente ao Produto Nacional Bruto de alguns pequenos países? (Ou, por exemplo, o orçamento de um clube de futebol como o Manchester United ser equivalente ao valor das exportações do Burundi?).
Gardner propõe como salário anual máximo o equivalente a 100 vezes o salário médio de um trabalhador desse país. Por exemplo, se o trabalhador médio aufere 40,000 dólares, o mais bem pago do país receberia um máximo de 4 milhões. Ainda, cada indivíduo não poderia acumular como fortuna pessoal mais do que 50 vezes o rendimento máximo permitido anualmente. Duzentos milhões de dólares constituiriam então o limite máximo de riqueza. Ainda assim generoso, não?
Qualquer rendimento adicional teria de reverter para caridade ou para o governo sob a forma de doação geral, ou dirigido a um qualquer fim específico, como a assistência aos veteranos de guerra ou um fundo de apoio às artes. Com os biliões acumulados mundialmente, haveria finalmente dinheiro para implantar os projectos urgentes para resolver os grandes e, aparentemente insolúveis, problemas da Humanidade.
Pode parecer utópico um plano deste género, mas vejamos que, ao longo dos séculos ideias tidas como revolucionárias, apesar de enormes objecções, conseguiram abolir instituições tão enraizadas na sociedade como a escravatura, ou a implantação do direito de voto universal.
As soluções não foram apresentadas como mágicas, nem com a facilidade que se associa mais aos super-heróis do que aos simples mortais que somos. Baseiam-se na urgência de soluções corajosas e radicais para resolver os desafios do Mundo actual. Um Mundo que não pode esperar nem pela lentidão da evolução política e muito menos pelo contínuo cinismo dos governantes.
Nestes, como noutros casos no passado, serão os visionários que alguns chamarão de loucos e sonhadores a encontrar resoluções onde outros apenas viam castelos nas nuvens.
E agora começa a senda da burocracia em Israel.
Conta bancária. Seguro de saúde. Equivalência dos estudos universitários portugueses e possível pós-graduação. Exame para a carta de condução. Aulas de hebreu. Bilhete de identidade. Passaporte.
Estas são SÓ ALGUMAS das coisas que eu tenho de tratar nas próximas semanas. Ao mesmo tempo tendo de enfrentar a onda de greves que afectam o Ministério do Interior e o Banco Postal, duas das instituições que controlam estes processos.
Cheguei a Israel na passada quarta-feira. Todavia, esta chegada, a minha quinta ao país, não tem paralelo com as outras. Agora cheguei como imigrante. Sem o aparato de muitas chegadas de imigrantes dos Estados Unidos, com milhares de pessoas à espera com bandeirinhas, mas com todos os passos planeados a partir do momento da aterragem no aeroporto de Ben Gurion.
Imigrantes de Marrocos no aeroporto de Lod, onde chegaram num avião vindo de França, 1954
Comecei o processo de aliya (nome dado à emigração para Israel e que, literalmente, significa "subida") ainda em Jerusalém, nos finais de Fevereiro último. Numa ida ocasional a um gabinete da Agência Judaica, para acompanhar um colega da yeshiva entretanto chegado a Israel, pedi eu também informações sobre os procedimentos de imigração.
Mais dúvidas surgiram e acabei por contactar o serviço em língua espanhola ou portuguesa do Global Center da Agência Judaica. Fui a uma entrevista, preenchi uns papéis e levei os meus documentos essenciais à abertura do ficheiro para a minha imigração: o passaporte e a chamada teudat hamará (uma declaração que atesta que eu sou judeu após passar o processo de conversão), essencial para assegurar o meu direito a emigrar para Israel.
Mais uma ida ao Global Center entregar uns papéis que faltavam e uma troca de e-mails com informações. Aos poucos, a data da minha aliya ia ficando mais clara. Após receber a garantia de ter todo o processo tratado e entretanto transferida a minha pasta para a delegação da Agência Judaica em Madrid – responsável também pelos raros casos de portugueses que emigram para Israel – resolvi comprar a viagem para Portugal. Todo o dinheiro que havia ganho em sete dias de trabalho nas limpezas antes de Pessah serviu para pagar o bilhete. Aproveitava para visitar a família e sabia que o meu voo de regresso a Israel seria pago pela Agência Judaica. E entretanto evitaria ter de renovar o meu visto de turista, entretanto a caducar. E como só poderia fazer aliya quando completasse um ano após a conversão, seria o timing perfeito.
Com a chegada a Portugal tive de ligar para Jerusalém, a confirmar que já me encontrava fora do país. Os trâmites seguiriam agora a partir de Madrid. Informada a embaixada israelita em Lisboa, estava aberta a porta para a obtenção de um "visto de aliya". Só foi necessário encontrar uma data em que o horário da embaixada coincidisse com a minha permanência em Lisboa às sextas-feiras. Coisa difícil, já que a delegação israelita fecha ao meio-dia e eu chegava normalmente à capital à uma da tarde. Levantar-me bem mais cedo e apanhar o autocarro das 8 da manhã para Lisboa foi a única opção. E esperar que não houvesse nada de extraordinário na embaixada que me impedisse de tratar da burocracia.
Numa das minhas idas de final de semana à capital para passar o Shabbat, fui à embaixada para pedir o visto. O habitual aparato de segurança no local foi facilmente ultrapassado com uma conversa em hebraico com um dos seguranças israelitas e o mostrar do passaporte com uma série de carimbos estampados em Israel. Algumas informações num questionário e pronto. Seria só esperar dois dias e o visto estaria pronto. E o senhor cônsul desejava falar comigo...
Chegara a altura de marcar a data do voo de regresso a Israel. Oferta do governo de Israel através da EL-AL, foi-me dito que o receberia por e-mail. Só sabia a data e a hora. Mas havia um problema: o voo seria apenas entre Madrid e Tel Aviv. A viagem Lisboa-Madrid teria eu de a comprar e seria posteriormente reembolsado. Procedimento estranho se comparado com o que acontece com os emigrantes que viajam da América Latina, aos quais a viajem é paga integralmente desde o início. Com grande aperto, lá consegui um voo para Madrid na data exacta que necessitava. E ainda tive de enviar o próprio bilhete, a factura e os dados da minha conta bancária para a delegação madrilena da Agência Judaica.
Telefonema para um lado, e-mail para o outro, agora parece que o dito cujo vai ser pago pelo consulado de Israel em Espanha. Vá-se lá saber... We wait and we wonder.
E ainda me falta toda a fase do processo após a chegada. Isso é outra empreitada.
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