Segunda-feira, 28 de Janeiro de 2008

Branco como a neve

As previsões meteorológicas são esperadas com expectativa em Jerusalém. Vai nevar ou, mais uma vez, não passa de falso alarme?

A neve é um fenómeno raro em Israel. Em todo o país, só o Monte Hermon, o pico mais alto de Israel, no limite norte dos Montes Golan, mantém neve suficiente para esquiar durante algumas semanas por ano. Para os cada vez mais numerosos fãs israelitas do esqui, as alternativas são as estâncias nos Alpes austríacos ou eslovenos ou as opções mais baratas na Roménia. O Líbano, para lá da fronteira norte, ainda não é opção para os israelitas, mas faz as delícias invernais dos sauditas e dos árabes do Golfo.

Nas últimas semanas, o frio foi atroz em Jerusalém e noutras zonas do país. Três pessoas morreram mesmo de hipotermia, uma em Bat Yam, uma cidade dos arredores de Tel Aviv e mais duas em Beersheva, no deserto do Neguev. Em Jerusalém, as autoridades municipais propuseram acolher os poucos sem abrigo da cidade em alguns hotéis.

Apesar de já se terem contado, há uns dias, 2 graus negativos na capital, a neve não chegou. E até a chuva está bem abaixo dos níveis normais para a época. Num país quase sem rios permanentes, a principal reserva de água doce do país, o Kineret, ou Mar da Galileia, está a apenas meio metro acima do nível de risco.

Se forem consumadas as previsões de três dias de neve para as montanhas do norte, para Jerusalém e até em Mizpe Ramon, no meio do deserto do Neguev, seria uma bênção. Porém, existe o lado problemático da questão. A cidade não está minimamente preparada para a queda de neve. Sejamos francos, nem vale a pena estar grandemente preparada, já que o cenário de nevão acontece em média apenas a cada 7 anos.

Só que, bastam uns poucos centímetros de neve para causar o caos nas estradas de acesso à cidade. Os túneis de Gush Etzion já são congestionados mesmo com bom tempo. A estrada de Hebron, que liga a Cidade Velha ao sul da cidade é um pesadelo de tráfego. A saída pela auto-estrada para Tel Aviv é um bico-de-obra nas horas de ponta, mesmo depois da construção de um novo aqueduto.

Os rabinos da yeshiva residentes fora da cidade já avisaram: se nevar, não poderão vir dar aulas. E, se a neve os apanhar na yeshiva, é provável que não possam voltar a casa. Que, ao menos não falhe o aquecimento nos quartos e salas de aula e a água quente nas torneiras. Cá estaremos para aguentar e, caso a cidade se cubra de branco, será uma boa oportunidade para as fotos. A Cúpula do Rochedo e o Muro Ocidental, cobertos de branco, são ainda mais belos como postal turístico.

publicado por Boaz às 21:57
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Terça-feira, 22 de Janeiro de 2008

O pão e os mísseis

Crise humanitária em Gaza. É um dos assuntos do momento. O Hamas acusa Israel de querer matar os habitantes da Faixa de Gaza à fome. Abastecido quase na totalidade a partir de Israel, a Faixa está, desde há semanas, sob um bloqueio parcial. O fluxo de combustíveis foi reduzido. Há horas de apagão na Faixa, já que a central de energia fica sem abastecimento de combustível. Entre os seus 1,5 milhões de habitantes – num território pouco maior que a ilha da Madeira – cerca de 80% estão dependentes da ajuda humanitária. O Hamas diz que até a farinha começa a faltar nas padarias.

A situação de carência dura há meses. E não é coincidência que a crise foi agravada quando o Hamas tomou pela força o controlo na Faixa, instaurando um poder separado da Autoridade Palestiniana, que dirige a Margem Ocidental a partir de Ramallah. O terror já anteriormente derivado de Gaza agravou-se com a instituição do Hamastão.

Com o bloqueio mais ou menos apertado, ou operações militares mais ou menos intensas, destinadas a destruir a infra-estrutura terrorista do Hamas, recorrentemente, as Nações Unidas falam de “punição colectiva”. Os habitantes de Gaza pagam, em conjunto, pelas acções do Hamas. A União Europeia pede contenção na resposta de Israel.

Passemos então a cerca de Gaza e observemos o lado israelita. Há meses – ainda mesmo antes do assalto do Hamas à Faixa – que Sderot e outras cidades israelitas situadas perto da fronteira estão sob uma chuva de mísseis. Lançados a partir de Gaza. Da Gaza do Hamas. Do Hamas eleito quase por unanimidade pelos habitantes de Gaza. Da Gaza bloqueada. Da Gaza esfomeada. Da Gaza que continua a apoiar o Hamas. Do Hamas que manda os mísseis. Fecha-se o círculo.

Após o desmantelamento dos colonatos judaicos de Gush Katif e da expulsão dos seus habitantes para cidades de refugiados em Israel, os Palestinianos tiveram a oportunidade de provar o que eram capazes de fazer com um território sob seu controle. A desgraça que era a vida em Gaza durante a existência dos colonatos implantados no meio da Faixa não diminuiu. Depois da selvagem destruição dos edifícios de uso público dos antigos colonatos, deixados intactos por Israel para futuro uso pelos Palestinianos, não houve ordem no território. Houve caos. Depois houve eleições. A escolha avassaladora em Gaza: o Hamas.

O contrabando de armas a partir da fronteira de Rafah, que une a Faixa de Gaza ao Egipto, alimenta a indústria dos mísseis lançados contra as cidades israelitas. Para parar esta ameaça diária Israel responde com um bloqueio e algumas esporádicas operações militares. A ONU e a União Europeia pedem contenção.

Imagine-se que a situação na cidade de Sderot era num qualquer país da Europa. Bragança a ser bombardeada todos os dias, a partir de Espanha? Se os habitantes de Antuérpia não pudessem sair à rua, devido às bombas lançadas a partir da Holanda? Se, durante meses a fio, chovessem mísseis italianos em Nice ou alemães em Estrasburgo? Alguém pediria contenção a Portugal, à Bélgica ou à França?

De Israel espera-se que não faça nada. Que deixe as bombas cair sobre escolas e famílias de Sderot. Não digam que os habitantes de Gaza não têm nada a ver com os mísseis. As sondagens mostram que o Hamas e a sua estratégia terrorista continuam populares na Faixa. Os pais de Gaza estão dispostos a sacrificar, de qualquer forma, os seus filhos. O ódio que sentem por Israel é maior que o amor que sentem pelos seus filhos.

Negar o direito de resposta face à agressão vinda de Gaza, seja sob a forma militar ou de bloqueio económico, por parte de Israel, é negar a legitimidade israelita de proteger os seus habitantes. É negar o direito de Israel de viver em paz, um direito reconhecido a qualquer Estado. Não é mais nada do que negar a Israel o direito a existir.

PS – Apesar das bombas que caem nas cidades israelitas, o país continua a permitir a passagem de doentes graves provenientes de Gaza para tratamento em Israel. Portugal aceitaria tratar doentes espanhóis, se chovessem mísseis em Bragança?

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publicado por Boaz às 21:37
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Domingo, 20 de Janeiro de 2008

Shabbat fora, cá dentro

Este foi de novo um Shabbat de yeshiva fechada. Não tendo conseguido encontrar um local alternativo para passar o Shabbat, acabei por ter de ficar sozinho na yeshiva. Comprei chalá, uma garrafa de sumo de uva natural, uma caixa de houmous e um bolo. A chalá é o pão tradicional comido no Shabbat. O sumo de uva natural é a alternativa não alcoólica para fazer o kiddush, a bênção especial do Shabbat. O houmous, uma pasta feita de grão e creme de sésamo, é o acompanhamento ideal para o pão. O bolo, apenas uma guloseima. Em honra do Shabbat.


Kotel, no início do século XX.

Com o frio que tem fustigado Jerusalém nas últimas semanas, ficar na yeshiva, que é como quem diz, ficar em casa, até soube bem. Com o Kotel, o Muro Ocidental ou das Lamentações, ao pé da porta, foi o meu local de escolha para rezar. Em Kabbalat Shabbat – a oração que antecede a oração da noite de Shabbat e durante a qual recebemos a santidade do dia – encontrei alguns amigos da yeshiva que tinham conseguido lugar num hotel, onde iam animar um grupo de jovens chegados do Brasil num programa religioso.

Decidi ir jantar a casa do Rabino Machlis, que recebe toda a pessoa que queira um lugar para comer ao Sábado, o que implicava uma caminhada de mais de meia hora. Para me proteger do frio que teria de aguentar durante a caminhada, regressei à yeshiva para vestir umas ceroulas por baixo das calças – desculpem-me a indiscrição e a violação grosseira da moda, mas este frio não está mesmo para brincadeiras.

Em boa hora regressei à yeshivá. Acabei por encontrar Abraão, um brasileiro de Manaus sozinho em Israel e recém-chegado a Jerusalém para trabalhar na yeshiva, que também não tinha onde comer. E ele, ao contrário de mim, não tinha comprado nada para comer no Shabbat. Haviam-lhe falado da alternativa do Rabino Machlis, mas não sabia como chegar ao local.

Cruzando o Bairro Arménio, saímos da Cidade Velha pela Porta de Jaffa, passámos pelo fundo do bairro de Mea Shearim até Maalot Dafna, um bairro de judeus ortodoxos separado de um bairro árabe apenas por uma avenida. Por ser Shabbat, espantou a Abraão ver tantos carros na rua, ainda mais em Jerusalém. Nem todos os Jerusalemitas são judeus religiosos, além de aquela avenida ser o acesso principal aos bairros árabes do leste da cidade.

Frente à casa do Rabino, tivemos de esperar cerca de meia hora até que abrissem a porta. Depois de duas horas de muita comida, cantigas e palavras de Torá do Rabino Machlis e de alguns convidados, regressámos pelo mesmo caminho para a yeshiva. Eu avisei, depois da longa caminhada de volta, o farto jantar pareceria nem sequer ter existido. Abraão procurou alguma comida na cozinha da yeshiva para "matar o rato".

Na tarde seguinte, depois do almoço que fiz sozinho no meu quarto, com o que havia comprado, não havia tempo para dormir. É normal dormir algumas horas nas tardes de Shabbat. Os dias curtos de Inverno não o permitem. Após o almoço desci de novo ao Kotel para rezar Minchá, a oração da tarde e estudar um pouco.

O Sábado é o dia mais animado no Muro Ocidental. Gosto de ficar sentado na praça a olhar as pessoas que passam. Judeus de todas as correntes, vestidos com as suas melhores roupas concentram-se no Kotel para rezar. Uns de streimel (chapéu de pelo), outros de chapéu negro, outros ainda de kippá tricotada. Os turistas e os judeus não religiosos usam as horrendas kippot de papel disponíveis à entrada da área de orações. Solução de emergência para os desprevenidos e "os afastados".

É um privilégio poder estar aqui todos os dias. Ainda mais no Shabbat. Na yeshiva é costume descermos as escadas todos juntos, mais de uma centena de estudantes, quase em pelotão, a cantar, até ao Muro Ocidental. Muitas pessoas aplaudem à nossa passagem, emocionadas pela expressão de fé e alegria. Já quase se tornou motivo de atracção turística, o grupo de estudantes de yeshiva que cantam pela Praça do Muro antes de kabbalat Shabbat.

Para a semana, se Deus quiser, volta o Shabbat dentro da yeshiva. A descida ao Kotel e o Kabbalat Shabbat, todos juntos. E com menos frio, espero.

publicado por Boaz às 12:26
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Sexta-feira, 18 de Janeiro de 2008

Entre nós

"Se eu sou eu porque tu és tu, e tu és tu porque eu sou eu; então eu não sou eu e tu não és tu. Porém, se eu sou eu porque eu sou eu, e tu és tu porque tu és tu, então eu sou eu e tu és tu."

Em Siach Sarphei Kodesh, Rebbe de Kotzk

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Sexta-feira, 11 de Janeiro de 2008

Bush e 'bushá'

O presidente americano George W. Bush esteve esta semana em Israel. A sua visita de três dias, na sua visão, destinou-se a desencalhar o processo de paz entre Israel e os Palestinianos. Na agenda de Bush estava exercer pressão sobre Israel.

Essa parece ser a regra da comunidade internacional: pressionar Israel. Nesta luta dual, Israel tem de dar, os Palestinianos têm de receber. E seguir pedindo, pela sua já conhecida táctica terrorista. Frente ao medo das bombas, a resposta é ceder. Pensando que, uma vez saciada a fera, terminarão as suas ameaças e ataques. Ingenuidade absoluta.

Israel é o parente pobre da política internacional. Mais nenhum país do planeta sofre a ingerência estrangeira na sua política, como Israel. Todos os outros países são vistos como absolutamente soberanos, por isso não há que interferir. A não ser que o sangue jorre e os tímpanos se rompam com os gritos que bradam da Birmânia ou do Sudão. Aí, convenhamos, não dá mesmo para virar a cara. Umas manifestações aqui, uns apontares de dedo acolá. Até a coisa amansar ou outro assunto mais mediático abafar os gritos. Israel, pelo contrário, é a todo o momento, o irmão mais novo a quem todos acham que podem dar conselhos, impor práticas.

As Nações Unidas têm na forja uma nova conferência internacional sobre o racismo, Durban II. Israel e vários outros países ocidentais já reclamaram que não permitirão uma repetição do que se passou na primeira conferência de Durban, marcada por um vergonhoso e ataque árabe e da extrema-esquerda contra Israel. Na altura, numa cimeira sobre racismo, Israel, os judeus e o sionismo foram atacados da forma mais implacável desde a Segunda Guerra Mundial. Ainda mais, de um modo "limpo" e "legítimo", com a autoridade emanada do alto do palanque.

Um cinismo manifesto. Uma evidente falta de vergonha na cara. Em hebraico, "bushá".

PS – Durante a visita de W. Bush a Jerusalém, a cidade andou caótica. Um dos maiores e mais caros hotéis da capital israelita, o histórico King David, foi reservado exclusivamente para a comitiva presidencial. As ruas do centro da cidade estiveram encerradas ao tráfego particular, numa distância de cinco ruas de cada lado da rua por onde passasse o presidente. Não passou de um grande e caro espectáculo de dois orgulhosos e desavergonhados animadores de marionetas, Bush e Olmert, que tentam desesperadamente mostrar que fazem alguma coisa que agrade aos seus votantes, antes de deixarem o controle do teatro.

publicado por Boaz às 12:13
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Domingo, 6 de Janeiro de 2008

Em boa vizinhança

A cada três Sábados, a yeshiva fecha as portas e os alunos têm de encontrar um lugar para passar o Shabbat. Para os israelitas isso não é problema. Simplesmente, passam o Shabbat com as famílias, em casa. Para os estrangeiros (ou os israelitas sem família em Israel, como é o meu caso), a opção é conseguir uma casa alternativa. Com vários dias de antecedência, tentei arranjar um lugar fora da yeshiva para passar o Shabbat com a minha noiva. Depois de vários telefonemas, conseguimos um local disponível a pouca distância da yeshiva. Apenas umas centenas de metros, fora das muralhas da Cidade Velha, no bairro de Shiloah.

Somente a 20 minutos a pé da Cidade Velha, o local é, no entanto, um mundo à parte do Bairro Judeu e da Jerusalém moderna e judaica a que estou habituado. Ali é "o outro lado". Shiloah (Silwan, em árabe) é um bairro de população árabe, situado imediatamente a sul da Cidade Velha. Num vale estreito que desce em direcção ao Mar Morto, amontoam-se casas pelas encostas.


Shiloah na era otomana. Árabes e Judeus Iemenitas viviam aí juntos, 1910

A meio da encosta, um edifício alto ostenta orgulhoso, em toda a altura da frontaria, uma faixa com a bandeira de Israel. Não é o local mais seguro para os judeus atravessarem, muito menos para morarem. Para lá chegar, há que esperar na saída da Cidade Velha por um jipe especial, conduzido por agentes de segurança privada. Assim que chegamos à entrada do prédio, ao chamado por walkie-talkie de um dos agentes do jipe, a porta abre-se do lado de dentro. Várias pessoas chegam connosco para passar o Shabbat naquele estranho lugar.

O prédio, chamado Kfar Hateimanim, é a residência de sete famílias judias. Umas dezenas de metros acima na mesma rua, numa casa isolada, vive outra família de judeus. Todos casais jovens, com crianças pequenas, a maior delas com 3 anos apenas. Por não terem homens suficientes para o minyan (conjunto mínimo de 10 homens adultos, obrigatório para se realizarem orações públicas), necessitam sempre de convidados para completarem o número.

Depois de recebidos pela família que nos acolheu, fomos convidados a apreciar a vista do telhado. No último andar do prédio, funciona a pequena (e gélida) sinagoga e numa colorida sala ao lado, o infantário para as crianças residentes. No telhado plano, alguns baloiços, escorregas e casas de brincar: o parque infantil. A poucos metros das casas dos vizinhos árabes, que rodeiam o edifício por todos os lados. Sem qualquer protecção, sem telhado ou sequer uma rede. À distância de uma fácil pedrada. Para não falar de um tiro. Por enquanto a situação está calma.

Ficámos alguns minutos no telhado a apreciar o lugar, ao sol do final da tarde, antes de começar o Shabbat. No alto da montanha, ao longe, avistam-se as muralhas da Cidade Velha, a Yeshivat HaKotel e a cúpula negra da mesquita de Al-Aqsa. Da parte de fora das muralhas, o bairro de Ir David, a Cidade de David, onde David fundou Jerusalém há mais de 3000 anos. Vista de postal turístico. Ocupado durante as últimas décadas apenas por árabes, nos últimos anos, a população judaica tem alastrado, através da compra de edifícios completos a residentes árabes, povoados depois com judeus dispostos a viver naquela vizinhança.

Medonho é olhar o primeiro plano. Uma paisagem dominada por casas semi-acabadas, cada piso num estilo distinto, prontas para receber mais um andar assim que se casar o próximo filho da família. Ruas íngremes e apertadas onde, em muitos casos não conseguem passar dois carros em simultâneo. Montes de lixo deitados pelas encostas, entre as casas ou ao longo das ruas. Uma favela de cimento. A pouca distância, uma mesquita improvisada numa residência, com graffitis na fachada representando a Cúpula do Rochedo e a Caaba de Meca.

Mais do que pela vista, tremi ao pensar e presenciar a situação em que vivem as famílias naquele prédio, apesar de serem extremamente calorosas connosco. Sempre que encontrava a porta aberta, o bebé da família que me hospedou saía para ir brincar nas escadas interiores do edifício. Naturalmente, ao ver o bebé com pouco mais de um ano a brincar nas escadas, peguei nele e levei-o para a sala. Não fosse ele cair. A mãe logo me disse: “brincar nas escadas é para ele como sair à rua”. O pai, que divide o tempo entre o pequeno apartamento e a sala de estudos religiosos no último piso do prédio já desabafara que, em muitos dias nem saía do próprio prédio. Pudera, ir aonde? Para mudar de ares, dá uma volta no telhado. Sob a mira hostil dos vizinhos. A única forma que os habitantes de Kfar Hateimanim têm para sair à rua é sob a escolta dos agentes de segurança privada que patrulham o complexo em permanência.

Os habitantes judeus do local reclamam que os terrenos da zona são propriedades de judeus, comprados nas últimas décadas do século XIX pelo Barão de Rothchild, para albergarem pobres judeus iemenitas imigrados para a Terra de Israel. A maioria das casas foi ocupada por árabes após confrontos com os residentes judeus nas primeiras décadas do século XX, ou após a expulsão dos judeus do bairro, durante a ocupação jordana de Jerusalém Oriental, depois da independência de Israel.

Pode reconhecer-se a quase inutilidade das suas pretensões, para lá do risco de vida que correm os residentes de Kfar Hateimanim e do risco e trauma das suas crianças, criadas num ambiente cerrado e perigoso. Por enquanto, e devido à sua tenra idade, facilmente confinadas às paredes de casa, da sala do infantário e às escadas do prédio. Quando crescerem, possivelmente os pais mudarão de casa e serão substituídos por outras famílias.

Com os seus enormes gastos em segurança certamente mantidos por doadores privados, Kfar Hateimanim é, ao mesmo tempo um posto de resistência judaica e um espinho cravado na garganta e no orgulho dos árabes de Jerusalém. E não parece ajudar à convivência entre ambas as comunidades.

PS – Notícia recente sobre esta comunidade, no diário Haaretz: Court rules to evict eight Jewish families from E. Jerusalem house.

publicado por Boaz às 12:11
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Quarta-feira, 2 de Janeiro de 2008

A farra e o julgamento

Ano Novo vs. Ano Novo

Em Israel, as celebrações do Ano Novo na noite de 31 de Dezembro, são bastantes discretas. Em Jerusalém, regida pela lei religiosa judaica, nem se dá conta delas. No máximo, alguns foguetes lançados de um dos bairros cristãos. Até as celebrações do milénio, tão apregoadas mundialmente, foram quase ignoradas na Cidade Santa. Ainda mais porque o fim do milénio coincidiu com o Shabbat e nesse dia é proibido o uso do fogo. E logo, também do fogo de artifício. Assim, não houve qualquer celebração oficial. Em Tel Aviv, onde, em muitos aspectos domina a cultura ocidental, há alguns bares, discotecas e hotéis que organizam algumas festas de Fim de Ano para os turistas e a juventude ocidentalizada.


Toque do shofar na sinagoga, postal alemão, início do séc. XX

O calendário hebraico conta os meses e os anos de forma distinta do calendário gregoriano. Os dois dias de Rosh Hashana, o Ano Novo Judaico, caem normalmente entre meados de Setembro e o início de Outubro. A essência das duas celebrações de Ano Novo não poderia ser mais distinta. Enquanto o Reveillon é dominado pela folia, o champanhe e o divertimento até cair para o lado, o espírito do Rosh Hashana é a submissão ao julgamento divino.

No último mês do ano judaico, Elul, apela-se à introspecção, ao arrependimento, à reconciliação. Entre os judeus sefarditas – judeus de origem portuguesa, espanhola e dos países árabes – é o mês de selihot, rezas especiais a meio da noite com o objectivo de alcançar esse estado de purificação espiritual.

Com a chegada do Rosh Hashana, o ambiente é solene. Ao mesmo tempo, existe a consciência de que cada ser humano está a ser julgado pelos seus actos durante o ano que passou. Julgado não por um qualquer falível e parcial juiz humano, mas pelo Juiz dos juízes. É o dia do reconhecimento de Deus como o Rei. Por isso, apesar da atitude de submissão perante o soberano máximo do Universo, não há mortificações de espécie alguma ou jejum. Com a devida diferença: também no dia da coroação de um qualquer rei de carne e osso, é dia de festa em todo o reino. Ainda mais sabendo que, apesar de, a par da sua omnipotência, o Rei dos Reis é também misericordioso.

Uma das poucas coisas comuns entre o Ano Novo e o Rosh Hashana é o formular de desejos para o ano que se inicia. No entanto, em vez de 12 passas, os judeus comem várias comidas simbólicas. Que o ano seja doce como a maça mergulhada no mel... Que os preceitos cumpridos sejam tantos como as sementes da romã...

A 31 de Dezembro nas discotecas troam os últimos sucessos da música. Nas sinagogas, em Rosh Hashana, repete-se a milenar tradição de soar o shofar, o corno de carneiro. A 1 de Janeiro, depois dos excessos da farra, há que ultrapassar a ressaca. No final da celebração do Rosh Hashana, com a confiança após o julgamento divino, a vida segue renovada.

publicado por Boaz às 22:16
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