Quarta-feira, 29 de Abril de 2009

Um país, um projecto divino

Na Torá, no final do Livro de Vaicrá (Levítico), uma série de terríveis e ameaçadoras maldições são lançadas por Deus sobre o Povo e a Terra de Israel, caso não cumpram os preceitos da Torá: "E reduzirei as vossas cidades à solidão, assolarei os vossos santuários (...) E Eu assolarei a terra, e se espantarão disso os vossos inimigos." (Vaicrá 26:31-32)

Estes e outros sinais foram cumpridos durante o longo exílio do Povo de Israel, que já dura há quase 2000 anos. O nosso Povo foi exilado, deixando desoladas as outrora vivas cidades da Israel bíblica. O Templo destruído. A Nação Judaica humilhada e dispersa entre os seus inimigos. A Terra Santa profanada por sucessões de povos invasores. Porém, apesar das constantes tentativas de se estabelecerem, em vinte séculos nenhum povo estrangeiro conseguiu lograr instalar-se na Terra de Israel. Tal como haviam declarado os profetas.

O escritor americano Mark Twain, que visitou a Terra de Israel no final do século XIX descreveu-a como uma terra deserta e miserável, onde apenas havia espinhos e pedras. Porém, poucas décadas depois do seu relato de desolação, as primeiras vagas de pioneiros judeus conseguiram fundar vilas e cidades (como Tel Aviv, que celebra este ano um século de existência). O deserto floriu, e também a Torá floriu.

Fontes proféticas revelam de forma clara que binian haaretz, a reconstrução da Terra de Israel e kibbutz galuyot, a reunião dos exilados, são dois dos sinais claros do início da Gueulá, a Redenção do Povo Judeu. Não é coincidência – não existem coincidências no Judaísmo, que tenhamos isso bem claro – que, na oração de Shemone Esre ou Amidá que rezamos três vezes por dia, a bênção da reunião dos exilados se segue à bênção dos anos, na qual pedimos prosperidade para a terra. Os dois sinais estão juntos.

Até as numerosas e difíceis guerras que Israel tem travado não são ocasionais. Também elas fazem parte do processo para atingir o projecto divino da Redenção. Os Sábios dizem que "a Guerra é o começo da Redenção". As guerras, com os seus sofrimentos e também conquistas, clarificam a situação do Povo e da Terra de Israel. Ao louvar a Deus dizemos que Ele é baal milchamot, Senhor da Guerra, zorea tzedakot, Semeador da Justiça, matzmiach yeshuot, o que faz florescer a Salvação. A ordem não é aleatória.

O significado do Yom Ha'Atzmaut, o Dia da Independência de Israel, é sem dúvida nenhuma, divino. O crescimento da Torá na Terra de Israel apenas se deu em força após o estabelecimento do moderno Estado de Israel. Surgiram numerosas yeshivot, midrashot, organizações de tzedaká e, se não fosse preciso mais nenhum motivo: plena liberdade religiosa e acesso aos locais sagrados para os Judeus. Sem o perigo de serem mortos, desprezados ou classificados de cidadãos de segunda classe – pela primeira vez em 2000 anos!

Apesar das diferenças de perspectiva dentro da comunidade judaica em relação ao Estado de Israel, em que os menos entusiastas (e opositores) às conquistas do ideal sionista apelidam o Yom Ha'Atzmaut de Yom Ha'Atzamot, o Dia dos Ossos – até parece haver neste irónico trocadilho um fundo de verdade. Tal como na visão do profeta Ezequiel (37:1-14), os ossos secos ganharão de novo tendões, carne e pele. "Esses ossos são toda a Casa de Israel! (...) Porei em vós o Meu espírito e vivereis, e vos porei na vossa própria terra; e sabereis que Eu, o Eterno, assim determinei e farei cumprir."

Yom Ha’Atzmaut sameach!

Nota: A celebração da Independência de Israel segue o calendário judaico que é lunar. De acordo com o calendário solar gregoriano a data é a 14 de Maio.

publicado por Boaz às 12:00
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Terça-feira, 21 de Abril de 2009

Feliz Dia do Holocausto

Hoje, em Israel e no calendário judaico, comemora-se o Yom HaShoá, o Dia do Holocausto. A data coincide com a revolta do Gueto de Varsóvia, em 1943 e acontece – não por acaso – uma semana antes do Dia da Independência de Israel.

O tom das celebrações repete-se todos os anos. No antigo campo de morte de Auschwitz-Birkenau, milhares de jovens participam na "Marcha da Vida". Em Israel, as cerimónias oficiais são centradas no Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém. Alguns sobreviventes, cada vez mais escassos e cada vez mais idosos, acendem seis tochas em memória dos 6 milhões de mortos judeus às mãos dos Nazis e seus colaboradores.


Jovens visitam Auschwitz, durante a 'Marcha da Vida'. | O arrogante macaco iraniano.

Na véspera, lojas e restaurantes fecham ao final da tarde, e mantêm-se encerradas durante a noite. As televisões emitem filmes e documentários sobre a Shoá, entrevistas com sobreviventes, os telejornais descobrem algumas das histórias ainda não contadas 64 anos depois do fim da II Guerra Mundial. Os canais de entretenimento, simplesmente suspendem a sua programação, anunciando a que a emissão voltará "após o final do Dia do Holocausto".

Às 10 horas da manhã, por todo Israel toca uma sirene. O trânsito pára. Nas ruas das cidades e nas auto-estradas e os condutores saem das viaturas e ficam de pé. Nas lojas, repartições públicas, escolas, no meio da rua, as pessoas param também. Dois minutos de silêncio, apenas cortados pelo clamor ondulante da sirene.

Este ano, no Yom HaShoá, estive em Nahariya, uma pequena cidade turística do Norte de Israel. À hora da sirene, acabado de tomar o pequeno-almoço, corri para a entrada do hotel para observar a cidade parada, em sentido. Na sala de jantar do hotel, porém, um grupo de mulheres e crianças árabes riam e falavam alto, continuando a sua farta refeição matinal. O Dia do Holocausto não parece dizer-lhes nada. Para eles, o Holocausto é apenas “a desculpa de Israel para oprimir o povo Palestiniano”, “para fazerem aos Palestinianos aquilo que os Nazis fizeram aos Judeus, ou pior ainda”.

Ontem, na sede das Nações Unidas em Genebra, onde decorre a segunda Conferência Internacional sobre o Racismo, discursou Mahmud Ahmadinejad, o presidente do Irão, famoso por apelar à destruição de Israel e pelas suas declarações em que nega o Holocausto. Já se sabia o que ele iria dizer e ele, sem vergonha alguma, repetiu-o. Na véspera do dia em que se lembra o Holocausto. No melhor dos palanques, houve um timing perfeito, do ditador e da arena política internacional que lhe dá voz.

Nota: Para quem não entendeu a ironia, o adjectivo do título deve ser lido com umas aspas bem carregadas.

publicado por Boaz às 10:30
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Quarta-feira, 8 de Abril de 2009

Os outros seis milhões

De acordo com a tradição judaica, apenas um quinto dos antigos escravos hebreus foi libertado do Egipto. A Torá revela que 600.000 homens com mais de 20 anos saíram da escravidão. Se juntarmos mulheres, crianças e jovens até aos 20 anos, teremos perto de três milhões de pessoas. E estes, lembremos, eram apenas 1/5 dos Filhos de Israel. Os outros, os que não saíram, nunca chegaram a receber a Torá. Nunca entraram em Israel. Nunca se tornaram Judeus. Os Hebreus que nunca saíram do Egipto morreram durante os três dias da praga da escuridão. A escuridão egípcia, na qual estavam tão imersos, sufocou completamente a sua identidade hebraica.

 
Travessa de Pessach com lugar para as diferentes comidas da festa.

No ano passado, a Agência Judaica realizou uma pesquisa destinada a determinar a população potencial de pessoas que podem fazer aliyá, a imigração para Israel. Praticamente esgotada a população de Judeus da antiga União Soviética, o estudo centrou-se nos Estados Unidos, o país com a maior comunidade judaica fora de Israel. Pelos números oficiais das comunidades judaicas, vivem nos EUA mais de 5 milhões de Judeus. Porém, o estudo da Agência Judaica descobriu que existem cerca de 11 milhões de norte-americanos com direito a imigrar para Israel – 6 milhões a mais do que o número oficial de Judeus!

Quem são estes seis milhões?

A grande parte dos judeus dos EUA chegou no período entre os finais do século XIX e o pós-II Guerra Mundial. Na sua maioria gente pobre que fugia de perseguições na Rússia, Polónia e Alemanha, fundaram a maior comunidade judaica do Mundo. No terreno da liberdade americana o Judaísmo atingiu o seu nível mais elevado desde a Idade de Ouro do Judaísmo Espanhol. O inglês tornou-se, segundo alguns, o "novo iídiche". Os Judeus atingiram a plena integração na sociedade americana: são líderes políticos e culturais, ícones da sociedade, apontados como exemplos do melhor que a América produz. No cinema, na ciência, na literatura.

Porém, em duas gerações apenas, milhões de descendentes dos judeus americanos perderam-se para o Judaísmo. A tranquilidade da vida judaica na América "ajudou" à assimilação. Muitos não têm qualquer vínculo com a comunidade judaica e a assimilação atingiu níveis alarmantes: mais de 50% dos judeus do país casam-se com não-judeus. (No Brasil a percentagem será superior.) Porém, mais do que uma catástrofe, muitos vêm este fenómeno como um sinal de "integração".

São numerosas as comédias que mostram um "casamento ecuménico", com um rabino e um padre católico ou pastor protestante partilhando a cerimónia. De novo, a "integração". Apesar da enorme presença de elementos judeus na cultura americana (e daí para todo o mundo), mais crianças judias sabem o nome da mãe de Jesus do que da mãe de Moisés. Muitas famílias judaicas celebram Channuka mas com uma árvore de Natal ao lado da chanukkia. Muitos judeus não celebram Rosh Hashaná nem escutam o toque do shofar, mas não perdem um Reveillon, nem deixam de escutar e admirar o fogo de artifício.

Em Portugal, dos fundadores da sinagoga de Lisboa, há pouco mais de 100 anos, são raros os seus descendentes que permanecem judeus. Mesmo das poucas famílias judias que restam, contam-se pelos dedos de uma mão as que são realmente religiosas. Há judeus suficientes para encher diariamente os cerca de 300 lugares da sinagoga, mas esta é usada apenas no Shabbat e festas. E o minyan (grupo mínimo de 10 homens necessário para realizar uma cerimónia religiosa) depende invariavelmente de algum ocasional turista. Sem escola judaica para as crianças, deixar o país é a opção para quem quer permanecer fiel às tradições. Em três gerações, as famílias judaicas tradicionais de Lisboa foram totalmente assimiladas. Restam os nomes de família apresentados com um orgulho aristocrata, mas pouco ou nada mais do que isso.

No calendário judaico, em Tisha be'Av, lembramos a destruição do Templo de Jerusalém e o consequente exílio que se lhe seguiu. Nesse dia lembramos também a Expulsão dos Judeus de Espanha, ocorrida na mesma data. É dia de jejum e de luto. Uma vez por ano, comemoramos o Yom HaShoá, o dia da memória do Holocausto. As sirenes tocam e o trânsito pára em Israel. Escolas e comunidades judaicas de todo o Mundo organizam palestras e exposições sobre o tema. Lembramos com solenidade nestas duas datas as maiores tragédias que caíram sobre o nosso Povo. Os milhões de Judeus que morreram e a glória do nosso passado. Todavia, não temos nenhuma data dedicada aos descendentes dos "Filhos de Israel" que nunca chegaram a ser Judeus.

A destruição do Templo, a Expulsão de Espanha, o Holocausto foram tragédias impostas aos Judeus por outros povos. Recordamo-las com dor pelas enormes perdas que sofremos. Lamentamos os Judeus que se perderam pela acção brutal dos Romanos, da Inquisição, dos Nazis. A assimilação, porém, é uma tragédia causada por nós mesmos, dentro do próprio Povo Judeu. De livre vontade, judeus casam-se fora da fé judaica. Alguns líderes judaicos chamaram-lhe "o Holocausto Silencioso". Silencioso, porque destrói sem sangue, sem tiros, sem cinzas. Mas – é possível – sem dor?

Como crescem os filhos dos Judeus que se casaram fora do Judaísmo? Que identidade têm? Sentem-se Judeus, ou outra coisa qualquer? Talvez até tenham passado pelo brit (circuncisão) e uma espécie de bar mitzva, estudaram em alguma escola judaica, tenham alguns amigos judeus… Como pode não sentir dor um filho de pai judeu e mãe não-judia quando entra numa sinagoga e, para o minyan, ele conta tanto como o turista que veio apenas tirar fotos?

O Judaísmo é uma corrente de elos unidos, formada desde Abraão. O elemento que mantém forte a corrente é a família judaica. Pessach - a Páscoa - é a festa judaica mais familiar. Não por acaso, as figuras centrais na celebração do seder de Pessach são as crianças. É nelas, na sua integração na história e tradições judaicas, que reside a coesão de toda a cadeia de transmissão que começou com Abraão. Afinal, Abraão foi escolhido para receber o pacto divino não apenas por ser um homem justo, mas porque D’us soube que Abraão transmitiria o Seu pacto às próximas gerações.

É nas crianças judias, frutos de um casamento e de uma família judaica, que se perpetua o pacto entre D’us e Abraão (reafirmado no Sinai a todo o Povo de Israel). Pessach, que significa "passagem", é o símbolo maior da transmissão da identidade judaica. Ao vivermos Pessach como se nós mesmos tivéssemos sido redimidos do Egito, renovamos a nossa fidelidade ao Povo de Israel. Decidimos se permanecemos, com os nossos filhos, fiéis ao pacto que recebemos dos nossos antepassados e aceitamos a redenção de D'us, ou se somos dos milhões que desapareceram na escuridão.

Nota: O nome da mãe de Moisés é Yocheved.

publicado por Boaz às 18:50
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Galeria de imagens da experiência como voluntário num kibbutz em Israel.


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