Há dias, após o final da viagem à boleia desde Alon Shevut, que me deixou no bairro de Talpiyot – como acontece tantas vezes – continuei de autocarro a jornada até à Cidade Velha. Respeitando o pequeno letreiro numa das janelas do autocarro "Por favor continue para a parte de trás do veículo", sentei-me numa das últimas filas de bancos.
De manhã, a caminho da yeshiva, costumo escutar música no meu pequeno leitor de mp3. "Mais vale ouvir música do que disparates", podia ser uma boa razão para manter o canal auditivo coberto com os auscultadores. Ainda assim, gosto de observar as pessoas à minha volta, na boleia, no autocarro ou nas ruas...
À minha frente no autocarro – sentei-me naquela fileira especial em que as pessoas se sentam de frente para as outras – estava um senhor na casa dos 50 avançados. Vi que falava bastante. Não o ouvia, por manter a música do mp3 ligada. Durante os mais de 10 minutos da viagem até ao centro da cidade, o homem não se calou. Numa expressão de resmungo esbracejava e apontava para um lado e para o outro, reforçando a importância que dava à sua prédica.
Olhava-me e para os outros passageiros na vizinhança e continuava. Parecia tentar convencer a todos da sua razão. "Ainda bem que tenho a música a tocar...", pensei. Atrás dele, outro homem, também de auscultadores nos ouvidos, parecia achar piada ao que o velhote falava. A certa altura tirou um dos auscultadores do ouvido, deixando-o livre para escutar o orador. Este, deve ter percebido o interesse do seu vizinho de trás e repetidamente se virava para ele, a confirmar que o interesse no que ele falava se mantinha. O vizinho, rebolava os olhos de contentamento pela dissertação do velhote, disfarçava o riso e acenava "sim senhor" com a cabeça, dando gás ao falador para continuar.
De que se queixava? Dos Árabes e do Obama, do Beitar ou do Maccabi, da crise e dos preços no shuq, da mulher dele e dos vizinhos, das obras do metro em Jerusalém e dos atrasos nos autocarros. A mim, sem ouvir (e não lamento) o que o homem dizia, dava-me vontade de rir pela teatralidade da cena. Uma peça de mímica, ao vivo.
À chegada ao final da Rua Rei David, deixo o artista a falar sozinho. O bilhete de autocarro não inclui entretenimento a bordo e temo ter de, no final, pagar gorjeta ao artista. Sigo o resto do meu caminho a pé. Nas ruas pedonais do shopping Mamilla, no shuq árabe e na praça da Rova (o Bairro Judeu da Cidade Velha) também há animação.
No autocarro, no shuq ou na praça, sempre se encontra um velho cheio de histórias que insiste em partilhá-las para uma ocasional (real ou imaginária) audiência. Passo, olho, sorrio e continuo.
Esta semana, Israel organiza durante cinco dias um grande exercício de alerta e defesa da população civil. O maior da sua história, serão simulados cenários de ataques com mísseis do Hezbollah a partir do Líbano, rockets do Hamas a partir de Gaza, uma vaga de atentados, e cenários de guerra com a Síria e o Irão. Serão ensaiados procedimentos de segurança em caso de ataques com armas convencionais, mas também químicas e biológicas. Ou seja, o teatro do Apocalipse.
É o terceiro grande exercício do género desde o final da Segunda Guerra do Líbano em 2006, mas não é apenas um treino da população para a catástrofe. É também – talvez mais do que outra coisa – uma forma de mostrar aos inimigos de Israel, com o Irão e a Síria à cabeça, que o país está preparado para qualquer ocorrência. Amanhã, terça-feira, de manhã ocorrerá o ponto principal de toda a ação, quando as sirenes soarem em todo o país, um sinal alertando para a iminência dos ataques. A essa hora, toda a gente deve correr a refugiar-se nos abrigos, num tempo mínimo de três minutos.
Vêm aí os ayatollas! Todas as casas e edifícios públicos em Israel são dotados de um abrigo de emergência, um verdadeiro bunker. Nos prédios de apartamentos, o piso mais abaixo é normalmente o escolhido. Porém, em Jerusalém, muitos prédios usam a enorme sala do abrigo como arrecadação da tralha de todos os moradores. A pequena probabilidade de um ataque com mísseis em Jerusalém – nenhum exército árabe quer arriscar-se a destruir a mesquita de Al-Aqsa, o terceiro local santo do Islão – deixa despreocupados os habitantes da cidade para este tipo de eventualidade.
align=justify>No meu apartamento, situado na cave de uma casa maior, o quarto de casal é o bunker. Dotado de uma janela especial, com portas deslizantes de aço e um filtro na parede exterior, paredes maciças de betão armado – tão duras que foi um trabalhão conseguir furá-las para pendurar o espelho do quarto. Só a porta blindada é que não fecha, pelo simples facto de a ranhura da fechadura nunca ter sido aberta no arco da porta. Detalhe.
align=justify>face=verdana size=2>Este não é apenas o nosso bunker, mas também dos vizinhos de cima, os donos da casa. Amanhã, às 11 horas da manhã, a senhoria, junto com seu bebé de pouco mais de um mês, talvez apareça para "visitar" o abrigo. O marido deve fazer o exercício no trabalho e as filhas, na escola. Digo talvez porque nos últimos dias não recebemos nenhuma informação oficial do que fazer durante o exercício. Não temos televisão, por isso, apenas sabemos da informação que passou boca-em-boca ou escutámos ocasionalmente na rádio.
Apesar das repetitivas situações de emergência em Israel, não acredito que a maioria da população leve muito a sério este tipo de treino. Talvez até achem que tudo não passa de uma grande e cara palhaçada. Para Ahmadinejad ver. Tal como satirizou hoje um apresentador de rádio: "E se eu estiver na praia, como faço? Atiro-me ao mar e digo 'glu glu glu'?"
Entrada de um abrigo anti-aéreo na rua de uma cidade de Israel.
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