align=justify>face=verdana size=2>A “Corboba House” (Casa de Córdoba) seria apenas mais uma mesquita a ser construída nos Estados Unidos. Afinal, de acordo com as estatísticas, o Islão é a religião que mais cresce nas terras do Tio Sam. Porém, esta não é uma mesquita qualquer. E a Baixa de Manhattan, em Nova Iorque, também não é um espaço qualquer. Apenas a dois quarteirões, ou 180 metros de distância situavam-se as "Torres Gémeas" do World Trade Center. Vozes contra e a favor do projeto depressa se manifestaram. Para os opositores, um estandarte do Islão – ainda que tolerante – ao lado do "solo sagrado" do Ground Zero é visto como uma provocação.
align=justify>face=verdana size=2>Em 11 de Setembro de 2001, o fanatismo islâmico alcançou o seu auge com os atentados terroristas nos EUA. O "choque de civilizações" manifestava a sua face mais violenta (e mediática). Foi o despoletar da "guerra ao terror". Que continua até hoje e, apesar da boa vontade do presidente americano Barack Obama, não tem perspetivas de terminar tão cedo. Este conflito é visto por alguns setores do mundo islâmico como uma nova Cruzada.
align=justify>face=verdana size=2>No último dia das férias do Verão, antes do recomeço dos estudos na
yeshivá, decidi visitar – desta vez sozinho – a cidade de Hebron, situada a apenas 20 quilómetros de casa. Há três anos que não visitava a cidade dos Patriarcas. Apesar da importância histórica e espiritual daquela que é a segunda cidade santa do Judaísmo, confesso que não é dos lugares que mais me atraem. Para lá da santidade, é uma cidade conflituosa, além de terrivelmente suja. Da primeira visita, recordo o som de tiros esporádicos e o persistente fedor a esterco de burro.
align=center>face=verdana size=2>
face=verdana size=1>"Sétimo Degrau" | Túmulo de Sara
Túmulo de Yishai e Rute |
Checkpoint "Tarpat"align=justify>face=verdana size=2>Apanhei boleia no cruzamento de Gush Etzion. Destino: Kiryat Arba. Assim que se sai do cruzamento do Gush em direção a sul, a estrada torna-se mais estreita. Ao lado do caminho há vinhas e campos de cultivo, alguns abandonados. Atravessamos várias aldeias árabes. A maioria das casas parecem inacabadas.
Grafittis em árabe estão em quase todas as paredes. Entre a miséria das aldeias sobressaem as casas dos ricos locais, com um telhado em forma de pagode chinês. Destoam tanto como as casas de imigrantes com inclinados telhados alpinos que pululam nas aldeias de Portugal. Montes de entulho de obras e das pedreiras e sucatas ferrugentas pontilham a paisagem. O lixo despejado na borda do jardim ou junto às paredes das casas fazem jus à proverbial imundície dos povoados árabes. Em frente a cada cruzamento, uma torre de vigia do exército de Israel. Na beira da estrada, placas vermelhas e brancas avisam os cidadãos israelitas da proibição de entrar no território da Autoridade Palestiniana. Ameaçadoramente declaram “Estão por sua conta e risco”.
align=justify>face=verdana size=2>Chegados a Kiryat Arba, o condutor da boleia deixa-me numa praça do colonato. Pergunto como chegar a Hebron. “Siga esta rua até ao cruzamento e espere uma boleia até à Gruta dos Patriarcas.” Pergunto se é possível chegar a pé. “Sim, tem presença do exército e da polícia. Não tem problema.” Ao chegar ao tal cruzamento, olho para Hebron, do outro lado da cerca que rodeia Kiryat Arba. Tirando o posto de controlo na entrada do colonato, não se vêm soldados na rua. Decidi não arriscar a caminhada e esperei pela boleia, que chegou logo a seguir. Quase não se avistam pessoas na rua. O calor do meio-dia não encoraja a sair de casa.
align=justify>face=verdana size=2>Na praça em frente à Gruta dos Patriarcas uma multidão de centenas de turistas franceses com bandeiras de Israel chega para visitar o santuário. Num dos cantos do edifício situa-se o lugar conhecido como o Sétimo Degrau. Desde a conquista islâmica no século XIII aquele era o ponto mais próximo onde os peregrinos judeus podiam rezar do túmulo dos Patriarcas. Depois de 1967, quando Israel conquistou a cidade à Jordânia, os Judeus puderam voltar a rezar no interior do santuário. Mesmo com a permissão, ainda hoje, muitos visitantes continuam a rezar no Sétimo Degrau, recordando 800 anos de humilhante proibição. Homens e mulheres, haredim e os tais turistas franceses, rezam juntos no local. Algumas mulheres choram.
align=justify>face=verdana size=2>À entrada do santuário há dois pontos de controlo dos visitantes. Não se pode entrar com armas. Nem com bandeiras, mesmo as de Israel que os franceses empunham. Grupos de homens estudam. Ao lado, um
minyan reza Minchá, a oração da tarde. Uma vedação de madeira separa-os das mulheres que recitam salmos. No pátio interior coberto por um toldo, outro grupo de homens reza. De cada extremo do pátio, dois pequenos santuários entre os túmulos dos casais dos Patriarcas sepultados no local. Jacob e Leah de um lado. Abraão e Sara do outro. A decoração do local é tipicamente muçulmana, denotando o domínio islâmico quase ininterrupto durante 1400 anos. As pinturas nos tectos têm um aspeto renovado. Sob o túmulo de Leah, os pombos – indiferentes à santidade do local –, deixaram os seus despojos.
align=justify>face=verdana size=2>Decido estudar um pouco enquanto espero por um novo
minyan para a oração da tarde. Saio pouco depois de terminada a reza. Ao descer as escadas para a rua pondero se devo ou não visitar outros locais de Hebron onde residem os judeus. Paro a alguns metros de um soldado que vigia um cruzamento da rua principal. Acerco-me e pergunto: “Quero ir até Tel Rumeida, é seguro?”. “Sim, não tem problema”, assegura-me.
align=justify>face=verdana size=2>A cidade de Hebron é um dos principais pontos de disputa entre Israel e os Palestinianos. Uma parte da Cidade Velha, em redor da Gruta dos Patriarcas e junto a Kiryat Arba, é controlada por Israel. Nessa área, três pequenos núcleos abrigam algumas centenas de habitantes judeus. Os bairros árabes têm um aspeto de cidade fantasma. A violência da Segunda Intifada – que em Hebron teve alguns dos seus piores episódios – levaram a prolongados períodos de recolher obrigatório e encerramento de lojas. Muitos dos habitantes árabes mudaram-se para o outro lado da cidade, controlada pela Autoridade Palestiniana.
align=justify>face=verdana size=2>À minha frente, na rua principal, caminha um casal de árabes idosos. O homem usa um longo
keffiyeh branco e vermelho. Um pouco adiante, um turista asiático. Ao passar por ele cumprimenta-me com um sorriso: “Hello”. Retribuo a saudação e pergunto-lhe de onde vem. É sul-coreano. No caminho tento conversar um pouco com ele, mas o seu inglês é terrivelmente limitado. Decide parar junto a uma paragem de autocarro que me parece abandonada.
align=justify>face=verdana size=2>Continuo sozinho a minha jornada. Olho as varandas sobre a rua principal, todas protegidas por finas redes de ferro. “Ao menos assim, não tenho de me preocupar que me atirem alguma pedra…”, penso. Todavia, um cano de espingarda passa bem entre os buracos da rede. Confio que o Exército deve ter procedido à limpeza das armas da cidade. No caminho, uma cafetaria self-service para uso dos soldados israelitas que patrulham as ruas. Beit Hadassa, o antigo hospital judaico é hoje uma das residências judaicas em Hebron. O local foi palco de um massacre da comunidade judaica às mãos dos vizinhos árabes, em 1929. Um pequeno museu recorda a tragédia.
align=justify>face=verdana size=2>Até há alguns anos, em cada porta havia uma loja. Hoje estão todas fechadas e trancadas com uma barra de ferro. A Intifada matou o comércio nesta metade da cidade. Não sei se ainda vivem árabes naquela área. Alguns barulhos de conversas e de televisões informam-me que sim. No fim da rua, um
checkpoint serve de passagem de pedestres para a parte palestiniana de Hebron.
align=justify>face=verdana size=2>Tel Rumeida, o meu destino, situa-se no alto de uma colina. A estrada é íngreme. Ao lado, o muro que separa a cidade. Quase no alto da encosta, uma abertura no muro permite observar a cidade palestiniana do outro lado. Ao contrário da área onde me encontro, daquele lado vejo
shoppings e mais
shoppings, com cúpulas vistosas. Prédios residenciais modernos. Aqui e além, mais alguns pagodes chineses. E um ininterrupto barulho de buzinas.
align=justify>face=verdana size=2>No alto da ladeira, dois soldados patrulham um cruzamento muito próximo de Tel Rumeida. Ali situa-se, ao lado de uma pequena base militar israelita, o núcleo judaico mais isolado de Hebron. A maior parte das famílias vivem em caravanas, ao lado das ruínas milenares de Tel Hebron. Entro no recinto da base para visitar o túmulo de Yishai e Rute, pai e bisavó do rei David. É uma ruína poeirenta e deserta. Uma vela memorial colocada sobre a laje escurecida testemunha que alguém passou ali recentemente. Entro na pequena sinagoga ao lado. Está vazia, mas a luz e a ventoinha estão ligadas. Sento-me por alguns minutos para descansar do calor e da caminhada. Recito alguns salmos. As eternas palavras do Rei David entoadas na cidade onde ele reinou por sete anos têm outro significado. Dou uma volta pelas ruínas. Um painel informa a existência de uma antiga sinagoga. Entro, curvando-me, por uma porta baixa. No interior, nada lembra tratar-se de uma sinagoga. Exceto alguns livros sagrados numa estante ou amontoados num canto, cobertos de pó.
align=justify>face=verdana size=2>São horas de regressar a casa. Desço a encosta em direção ao centro da cidade. Algumas crianças árabes caminham também por ali. Passa por mim um carro israelita, o primeiro que vejo passar desde que saí há mais de uma hora da Gruta dos Patriarcas. Junto a Beit Hadassa várias crianças judias correm pela rua. Para eles aquele é o espaço de brincadeiras, independente da situação que se viva na cidade.
align=justify>face=verdana size=2>Avisto o autocarro 160 que vai partir para Jerusalém. Cheguei em boa hora. Na segunda paragem, o turista coreano ainda espera o transporte de regresso a Jerusalém. Olho a cidade passar pelo vidro sujo do autocarro. Sujo como as ruas da Cidade Velha com casas esventradas, cicatrizes da Intifada. Hebron é um dos símbolos das intermináveis (e talvez insolúveis) negociações com os Palestinianos. É difícil para Israel manter a situação atual, pelos custos económicos e humanos. O exemplo da entrega de Gaza não perspetiva bons resultados para futuras transferências de território. Até porque Hebron é um dos mais poderosos redutos do Hamas na Cisjordânia.
align=justify>face=verdana size=2>Santa e conflituosa. Cheia de preces. Cansada de mágoas.
align=justify>face=verdana size=2>Um jovem, Marc Mezvinsky, casa com a princesinha da América, Chelsea Clinton, filha do antigo presidente Bill e da atual secretária de Estado Hillary. Ele judeu. Ela metodista. Nos últimos meses, desde que a imprensa noticiara o compromisso entre Marc e Chelsea, os comentadores em Israel especulavam sobre o caso. Se Miss Clinton se iria converter ao Judaísmo e o que significa um casamento destes. Sabe-se que nas últimas “Grandes Festas” – Rosh Hashaná e Yom Kippur, ou o Ano Novo Judaico e o Dia do Perdão –, Chelsea e Marc participaram juntos nos serviços religiosos numa sinagoga. Isso parecia dar um sinal de esperança aos que sonhavam ver formar-se mais uma família no Povo de Israel.
align=center>
Casamento judeu em Jaffa, 1899align=justify>face=verdana size=2>Na América da integração, do "melting pot" onde tudo se funde, até é bastante aceitável uma cerimónia de casamento ecuménica. Como o de Marc e Chelsea. Por um lado, o casamento foi oficiado por um pastor metodista. Por outro, realizou-se debaixo de uma chuppá (o pálio nupcial judaico), com a recitação das Sheva Brachot (as sete bênçãos do casamento judaico), com o noivo de kipá e talit (o xaile de orações judaico), com a assinatura da ketubá, o contrato matrimonial e contou com a presença de um rabino. (Reformista, pois claro). À maneira americana, em nome de Moisés e Jesus. Apenas na aparência. Afinal, dados os factos, é evidente que nem para o noivo é assim tão importante ser judeu, e nem para a noiva significará alguma coisa ser cristã. Se assim fosse, nem se teriam casado, uma vez que fazendo-o, tanto um como o outro, estão a ir contra a tradição da sua religião.
align=justify>face=verdana size=2>Do ponto de vista judaico, apesar de toda a alegria de um casamento, este é apenas um sinal de um dos fenómenos mais significativos e trágicos da história judaica do último século: a assimilação. O fenómeno surgiu na sua expressão moderna com a emancipação judaica promovida pelo liberalismo napoleónico, quando os judeus da Europa deixaram aos poucos de ser "cidadãos de segunda" e foram integrados na sociedade. Durante séculos, judeu era sinónimo de perseguido.
align=justify>face=verdana size=2>Em muitos casos, como em Portugal e Espanha, a conversão ao Cristianismo não significava o fim das tormentas, pois continuava o estigma do cristão-novo e as suspeitas de judaizar. Ainda que perseguido, a permanência numa comunidade era o único refúgio para o judeu. Com o despertar das liberdades cívicas e da crescente igualdade de cidadania, independente da religião e origem social, a ideia da comunidade judaica como refúgio tornou-se praticamente obsoleta. Um judeu que saía do caminho do Judaísmo não se tornaria um pária completo “lá fora”. Ainda que, de vez em quando, ainda o fizessem lembrar de onde ele tinha saído. A mácula do cristão-novo, ou judeu-velho que teima em não desaparecer.
align=justify>face=verdana size=2>Foi na América, terra das liberdades e das oportunidades, que os Judeus mais se desenvolveram e prosperaram. Pela primeira vez na história, os Judeus deixaram de ser uma classe marginal para passarem a estar no mainstream. Para serem o mais fino desse mainstream: a elite na literatura, na filosofia, na política, na moda e no cinema. Elementos da cultura judaica – como palavras em língua yiddish e comidas típicas – foram integrados no quotidiano do americano comum.
align=justify>face=verdana size=2>Porém, a par da prosperidade económica e da plena liberdade social e de culto, cresceu a dissolução dos valores judaicos como em nenhuma outra sociedade até então. Aquilo que a Torá (em Devarim/Deuteronómio 32:15) descreve como: "E Yeshurun (outro nome de Israel) engordou e deu coices: engordaste, engrossaste e tornaste-te corpulento! E abandonou Deus..."
align=justify>face=verdana size=2>Esta será apenas mais uma família americana, das milhares de famílias americanas em que um dos cônjuges é judeu. Neste caso, caso Chelsea não se converta ao Judaísmo, no futuro, isso significa que os filhos desta família não serão judeus. (De acordo com a Halachá, a lei judaica, os filhos de mãe judia são sempre judeus, mesmo que o pai seja "gentio", enquanto que os filhos de um homem judeu e de mãe não-judia, serão considerados não-judeus). O abandono dos valores e tradições judaicos – para lá da circunstância de casar sob a chuppá, envolto num talit e de cabeça coberta com uma kippá, escutar as sete bênçãos e ter um rabino - ainda que reformista - a dirigir a cerimónia, realizada num Shabat, são um sinal da crise que vive uma grande parte do povo judeu. Mais ainda na Diáspora. Pior, nas sociedades onde os judeus são livres, com a América à cabeça.
align=justify>face=verdana size=2>Porém, o que poderíamos esperar de um jovem que nunca teve uma educação judaica significativa? O que significará para ele o Judaísmo para além de algumas velhas histórias de família? Sendo assim, honestamente, não poderíamos pedir mais do rapaz. Para lá do amor – que se diz ser cego – sentido por uma menina que ele achou ser a sua alma gémea. Mesmo que não-judia. Em termos judaicos, o problema de Marc Mezvinsky – e dos muitos como ele – não está nele próprio, mas na sua família que o criou como um não-judeu. Agora, ele apenas se casou em conformidade.
align=justify>face=verdana size=2>Nos comentários à notícia na Internet, não pude deixar de concordar com a honestidade do seguinte: "Quem disse que isto era um casamento misto? Ele não se importa com a fé dele, ela não se importa com a fé dela. Este é o casamento perfeito para duas pessoas que não se preocupam com a sua herança. Isto não é um casamento misto. É a triste realidade de uma sociedade sem outros valores para lá do ser liberal".
align=justify>face=verdana size=2>E depois da bela festa, dos flashes dos fotógrafos e as parangonas nas revistas cor-de-rosa, Marc e Chelsea viverão felizes para sempre. Ou, em menos de dois anos estarão a juntar-se à regra de "casar entre um divórcio e o outro". Para seguir fielmente mais uma tradição americana.