Domingo, 25 de Maio de 2014

Pontes e muros entre Roma e Jerusalém

Fiéis judeus ortodoxos passam por um grupo de cristãos que percorrem a Via Dolorosa, Cidade Velha de Jerusalém.
Foto de Micha Bar-Am.

Aos Cristãos e aos Judeus não faltam graves problemas internos. Alguns deles comuns. Assimilação e degradação de costumes. Afastamento e desinteresse das gerações mais jovens. Casos de pedofilia cometidos por membros do clero. Nenhuma religião tem o exclusivo da virtude. Menos ainda, exclusivo do pecado.

Do lado católico, a bomba dos escândalos de pedofilia rebentou na última década. Do lado judaico, o fenómeno do abuso sexual de menores só agora começa a aparecer nos media. O iceberg da pedofilia em escolas e comunidades judaicas mostrou até agora uma ponta muito pequena. Nos Estados Unidos, Austrália e outros países, alimentado pela onda de escândalos na Igreja Católica, o problema da pedofilia nas comunidades judaicas tem sido discutido. Em Israel, pelo contrário, mal se fala do assunto. Porém, quase todos os meses, descobre-se mais um episódio macabro. Debaixo da superfície, o monstro está vivo e, tal como acontecera no caso católico, é abafado por quem deveria travá-lo.

É óbvio que nenhum destes graves problemas internos é causado pelo outro lado. Mesmo que, há alguns meses, um importante cardeal católico tenha acusado os Judeus e o seu alegado “controlo dos media” de serem os responsáveis pelo escândalo de pedofilia que tem abalado o Catolicismo. Momentos de delírio deste género, de quem quer atirar responsabilidades para o quintal do vizinho acontecem também do nosso lado. Do alto das manias de perseguição que existem de parte a parte, parecemos acreditar que o outro lado só pensa em destruir-nos. Aumentar as divisões que existem antes ambos não resolverá nenhuma das polémicas mútuas. E muito menos os problemas internos.

Será dispensável dizer que a Igreja Católica e o papado não têm uma boa imagem entre os Judeus. Os casos de perseguição e violência contra judeus a mando dos Papas (ou outros com maior ou menor concordância papal) foram numerosos desde que o Catolicismo se estabeleceu como a religião maioritária e dominante na Europa. Todavia, a bem da sinceridade na análise histórica, a situação atual das relações judaico-católicas não podia ser mais distinta daquela que caracterizou os últimos séculos. Como mencionou o Presidente de Israel, Shimon Peres, acuando da eleição do novo Papa Francisco, as relações com o Vaticano nunca estiveram tão boas.

Bons sinais

As grandes mudanças começaram com o Concílio Vaticano II, nos anos 60. Logo em 1964, Paulo VI visitou Israel na sua primeira visita papal. (Uma parte da visita do Papa Francisco, que hoje chega a Israel, é para celebrar o 50º aniversário dessa histórica viagem.) Numa rápida estadia de apenas 11 horas na Terra Santa, visitou vários locais sagrados da Cristandade e encontrou-se pela primeira vez com o patriarca ortodoxo Atenágoras I, num sinal de aproximação entre Roma e Constantinopla, há quase 1000 anos de costas voltadas.

Ainda que na altura a Santa Sé e o Estado Hebraico não tivessem ainda estabelecido relações diplomáticas (apenas o seriam 30 anos depois, em 1994) e a visita tivesse sido conduzida como se Israel não fosse um país independente, o papa encontrou-se com o presidente israelita Zalman Shazar.

Foi um encontro de apenas 20 minutos num remoto posto da fronteira entre Israel e a então Margem Ocidental, ocupada pela Jordânia. Dois papados mais tarde, João Paulo II destacou-se por vários atos simbólicos de aproximação: o estabelecimento de relações diplomáticas com Israel, a visita a Auschwitz, o pedido de desculpas pela Inquisição e outras perseguições anti-judaicas. E acima de tudo a histórica visita a Israel, no ano 2000. Bento XVI voltou a repetir os atos simbólicos desde a sua visita à Alemanha e à sinagoga de Colónia. E o Papa Francisco é reconhecido pela sua excelente relação com os Judeus, já desde os anos em que era arcebispo de Buenos Aires.

Ainda assim, alguns episódios pontuais tenham azedado as relações com Israel e a comunidade judaica. Por exemplo, os planos (nunca concretizados) de canonização dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, os quais introduziram a Inquisição em Espanha e ordenaram a Expulsão dos Judeus em 1492. E mais recentemente, já no papado de Bento XVI, o controverso processo de reabilitação do rebelde bispo Richard Williamson, conhecido pelas suas declarações anti-semitas e negação do Holocausto. (*ver nota no final) E também, o apoio declarado do Vaticano à causa palestiniana.

Do lado judaico, o diálogo ecuménico com o Cristianismo tem sido liderado pela corrente Reformista. Os “valores humanistas e universalistas” expressos pelo Judaísmo Reformista atendem antes de mais ao valor supremo do “espírito da modernidade”. Entre os Ortodoxos, as coisas são (um pouco) mais complicadas. Ainda mais em Israel. Na Diáspora, os Judeus, mesmo os ortodoxos, têm um contacto mais ou menos próximo com os não-judeus. Em especial com os Cristãos. Conhecem, por contacto cultural com a sociedade em geral, um pouco da cultura cristã. Pelo contrário, em Israel o contacto entre as diferentes religiões é superficial. E até mal visto. Os preconceitos e a ignorância mútuos são profundos.

Manifestações de desprezo

Se bem que sejam inegáveis as feridas abertas no Povo Judeu pela História, em muitos casos não é promovida uma atitude de reconciliação, mas de constante ênfase nessas feridas. Apesar de inúmeras fontes distintas, muitas delas expressando posições contraditórias entre si, a maioria do pensamento judaico não tem uma boa definição do “não-judeu”. As principais fontes legais judaicas foram escritas em períodos de intensa perseguição anti-judaica. A Mishná, durante a ocupação romana da Terra de Israel. O Talmude, nos primeiros três séculos da era comum, após a trágica destruição do Templo de Jerusalém. O Mishnê Torá de Maimónides, no meio das guerras de cristãos contra mouros da Reconquista. O Shulchan Aruch de Yosef Caro, durante a Inquisição Espanhola... Porém, apesar de não ser possível apagar a História, também não podemos olhar para o mundo como se nada tivesse mudado desde os anos de perseguição romana em que o Talmude foi escrito.

Ainda assim, em muitas yeshivot (academias de estudos judaicos) e em panfletos semanais distribuídos em sinagogas, sempre que o assunto envolve o Cristianismo, os tradicionais preconceitos anti-cristãos são expressos abertamente. Nos media israelitas que eu consumo (a maioria deles são em língua inglesa) frequentemente incluem notícias sobre a relação com os cristãos. Sejam casos passados em Israel ou na Diáspora. Em geral, em qualquer artigo que envolva – mesmo remotamente –, o Cristianismo, levanta-se uma onda de comentários dos leitores que demonstram até onde falta avançarmos no diálogo inter-religioso e na educação para a tolerância. Aliás, do de um comparável nível de intolerância manifestado por leitores “gentios” quando as notícias falam de Israel ou os Judeus.

O mesmo se passa com muitas páginas pró-Israel no Facebook. Em todas essas páginas abundam os “Amigos” cristãos, em geral evangélicos. Até aí, nenhuma objeção. Afinal, entre os gentios, eles são os mais entusiastas ativistas pró-Israel. Todavia, sem qualquer controle, como se fosse uma praga incontrolável, junto com as suas mensagens de apoio a Israel e ao Povo Judeu, costumam introduzir os habituais mantras evangélicos, espalhando a sua mensagem de apelo aos Judeus para aceitarem “a salvação”. Ou seja, Jesus. “Amigos”, mas com uma agenda pouco amistosa.

Da mesma forma que não aceito a difamação do Judaísmo e dos Judeus pelos Cristãos, também não aceito a difamação do Cristianismo feita por Judeus. No caso do Facebook, não foram poucas as páginas pró-Israel que deixei de acompanhar (ou seja, deixe de ser “Amigo”) por achar inaceitáveis as mensagens que aí eram propagadas pelos comentadores, com total conivência dos administradores da página. O discurso de ódio e desrespeito, levado a cabo por alguns fanáticos (de ambos os lados), está bem presente na maior rede social do planeta.

Em inúmeras ocasiões, encontrei-me na muito irónica posição de “defensor da honra cristã”. Logo eu! Ainda que eu próprio tenha a minha própria lista de oposições ao Cristianismo – se assim não fosse, não o teria abandonado – elas não implicam uma atitude de difamação ou até desprezo.

Faltam muitos passos a serem dados, de ambos os lados para que hoje, e no futuro, as relações entre os Judeus e os Cristãos, sejam amistosas. Sobretudo, falta educação. Só ela poderá ultrapassar preconceitos, ajudar a sarar feridas ainda abertas e instaurar o respeito mútuo. Que assim seja, Bezrat Hashem.

* Oficiais do Vaticano declararam que, antes da decisão de reabilitação do bispo Richard Williamson, desconheciam as polémicas opiniões do bispo. O Papa Bento XVI criticou o bispo por suas opiniões anti-semitas e ordenou que ele se retratasse publicamente da negação do Holocausto, sem o qual, não poderia exercer quaisquer funções episcopais dentro da Igreja. Há que realçar que a decisão de reabilitação do bispo Williamson foi uma questão interna católica a fim de integrar o grupo dissidente a que pertence, um pequeno cisma católico tradicional que não aceita as mudanças do Concílio Vaticano II.

publicado por Boaz às 10:00
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Perfil do autor. História do Médio Oriente.
Galeria de imagens da experiência como voluntário num kibbutz em Israel.


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