Quinta-feira, 13 de Março de 2008

Órfão de filho

Na maioria – se não mesmo na totalidade das línguas do Ocidente, não existe um termo para denominar um progenitor que perde um filho. Alguém que perde o pai ou a mãe é órfão. Alguém cujo cônjuge morre é viúvo. No entanto, não existe termo para quem perde um filho. Talvez a incapacidade de definir tal situação extrema, tenha deixado essa lacuna no dicionário. Em hebraico, essa palavra existe: shakul, um termo que traduz a ideia de desamparo ou solidão.

Dias depois da tragédia na yeshiva Mercaz Harav, o ambiente na Yeshivat Hakotel, onde eu estudo, continua muito pesado. Mesmo entre os brasileiros, que pela sua natural maneira de ser, costumam mostrar-se mais descontraídos que a maioria dos outros povos. Podia ter sido aqui o ataque, creio ser o sentimento geral.

Acompanhado do choque adicional de um dos jovens mortos, Yohai Lifshitz, ser filho de um dos directores da minha yeshiva. No momento do enterro, o Rav Tuvia Lifshitz, pai de Yohai disse: "agradecemos a Deus pelo privilégio de termos vivido com Yohai durante 18 anos". Parecerá uma resposta fria para alguém que no dia anterior perdera um dos seus filhos. Parecerá um desprendimento absurdo em relação aos filhos, à vida. Parecerá, mas apenas para quem não acredita em Deus.

Ontem, terça-feira, o grupo dos alunos sul-americanos da yeshivat Hakotel – no qual eu estou incluído – foi prestar condolências ao Rav Lifshitz. Na incapacidade de receber tantos visitantes na sua pequena casa, foi montada uma tenda na varanda do telhado. Sentado numa cadeira baixa, o pai de Yohai recebeu durante vários dias milhares de pessoas, chegadas de todo o país. Assim que cheguei, não consegui deixar de reparar no que se passava no telhado de uma casa vizinha. Um muçulmano rezava, virado para sul, na direcção de Meca.

Sendo impossível de imaginar a dor da perda da família, era todavia incrível a calma emanada da face do pai enlutado, mesmo passados alguns dias da tragédia de Mercaz Harav. O Rav Tuvia falou do exemplo do filho, do amor que tinha pelo estudo e do alto valor que Yohai dava ao tempo. O tempo que lhe foi tão tragicamente cortado. A confiança inabalável no Criador mostrada pela família é profundamente inspiradora.

As respostas teológicas perante uma tragédia destas não são fáceis de aceitar. Todas as coisas e criaturas, seres humanos incluídos, têm um papel e uma missão no Mundo. Quando a sua missão termina, essa coisa, criatura, pessoa, cessam de existir. Yohai e os seus sete companheiros de estudo terminaram a sua missão. Reuniram-se a Deus, a causa inicial de tudo. O facto de terem morrido enquanto estudavam Torá, o mais valioso dos preceitos judaicos, encerra na sua partida terrena um significado especial.

No Judaísmo não existe o culto da morte. Em vez de manifestações violentas nas ruas, das yeshivot saíram apelos ao fortalecimento do estudo de Torá. Na Yeshivat Hakotel definiram-se períodos especiais diários para o estudo de ética judaica e do tratado talmúdico de Meguilá, ligado ao festival de Purim que se aproxima no calendário. É um tempo de introspecção e de melhoramento individual, dominado por todas as perguntas difíceis que podemos (e devemos) fazer nestes dias, mesmo apenas para nós próprios.

Enquanto isso, no bairro de Jabel Mukaber, na zona oriental de Jerusalém, a família do terrorista morto, um árabe de nacionalidade israelita, montou uma tenda para receber aqueles que lhe queiram prestar homenagem. E hasteou as bandeiras do Hamas e do Hezbollah. (A polícia israelita retirou finalmente as bandeiras, que vergonhosamente permaneceram hasteadas vários dias). Alaa Abu D'heim é mostrado como um herói. O "heroísmo" celebrado não é aquele que advém da salvação, da ajuda ao próximo, ou da vida, mas da destruição e da morte. Uma das formas mais seguras de medir o carácter das pessoas (e dos povos), é saber quem são os seus heróis. Eles exemplificam o seu sistema de valores.

Tal como os pais de Yohai, também os pais de Alaa são shakulim, desamparados. Porém, enquanto dos pais de Alaa enaltecem o seu "martírio" sangrento que causou oito mortes entre os inimigos; os pais de Yohai enaltecem a vida do filho e o seu último momento, estudando, debruçado sobre o tratado talmúdico de Menachot, o qual descreve um dos tipos de sacrifícios oferecidos no antigo Templo de Jerusalém. A diferença entre Alaa e Yohai é tão evidente como a que existe entre a escuridão absoluta e a luz.

publicado por Boaz às 22:20
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2 comentários:
De Salo Cohen a 19 de Março de 2008
Falaí Boaz, tudo bem?
Enquanto tava em Israel nunca tinha entrado no seu Blog mas a verdade é que agora que estou desse lado do atlântico, comecei a ler. Dá pra sentir um pouco mais perto daí. Kol hakavod, você consegue colocar a avirá no texto.
Abração
Salo
De Lúcia Medeiros a 6 de Julho de 2022
“Não há nome para esta dor na maioria dos idiomas. No hebraico bíblico, porém, existe uma palavra que identifica pais enlutados por um filho: a palavra é shëkhulåh.

Este adjetivo aparece só uma vez no texto hebraico, em Is 49,21 e é traduzido como “desfilhada”.”

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