Numa das minhas últimas jornadas diárias para Jerusalém, apanhei boleia num carro onde viajavam duas mulheres que conheço vagamente, residentes em Alon Shevut, tal como eu. Mãe e filha conversaram num idioma estranho durante toda a viagem. Percebi imediatamente que não era hebraico. Apesar de ainda um pouco ferrugento na minha boca, o hebraico já não é “um idioma estranho” para mim.
“Talvez seja yiddish”, imaginei, lembrando-me da língua falada pelos Judeus oriundos da Europa Oriental, que é uma mistura de dialetos alemães e eslavos. “Não, também não é”, percebendo pela falta do forte sotaque alemão. Curioso, prestei atenção à conversa, sem entender uma única palavra daquele idioma misterioso. Da lista de possibilidades, fui sucessivamente excluindo as línguas germânicas e eslavas. “Húngaro!” concluí, atendendo à abundância do som “ô”. Aqui e acolá, a filha pontilhava o húngaro com expressões em hebraico e até português. *
Jerusalém, nas línguas do Mundo. Na década de 1880, o escritor e jornalista Eliezer ben-Yehuda iniciou e reabilitação da língua hebraica como um idioma moderno. Consultando as fontes do Tanach (as escrituras judaicas, que incluem a Torá e os livros dos vários profetas), ben-Yehuda criou palavras novas a partir de velhos termos. Muitas das suas palavras novas são hoje parte do léxico hebraico, mas cerca de 2000 nunca foram adotadas.
Comparando com o português ou o espanhol, o idioma hebraico é bem menos rico em raízes de palavras. Porém, de apenas uma raiz, conseguiram criar-se dezenas de termos. Por exemplo, da palavra avir, “ar” em hebraico, surgiu aviron, “avião”. Porém, este é mais conhecido como matós, proveniente da raiz tas, “voar”. E como este, há dezenas de exemplos de vocábulos do hebraico moderno, com versões diferentes para a mesma coisa, dependendo da raiz que foi usada para nomear pela primeira vez uma coisa nova. Em maior ou menor medida, adotaram-se palavras com sonoridade grega, inglesa ou espanhola.
Porém, este renascimento da língua hebraica não apagou o uso das línguas que os Judeus usaram durante as gerações passadas na Diáspora. Os judeus haredim (ultra-ortodoxos), chegados da Europa Oriental, ainda hoje usam o yiddish como idioma do quotidiano, dos jornais da comunidade e dos pashkevilim, os cartazes afixados nas paredes dos bairros ultra-ortodoxos, contando as novidades, escândalos e alertas da comunidade. Inclusive na yeshivá, a academia de estudos religiosos, a Lei é discutida no idioma dos seus antepassados europeus. O hebraico, a língua sagrada, é reservado para os próprios livros da Lei e para as orações. Na opinião de muitos haredim, usar o hebraico nos assuntos do quotidiano seria misturar o sagrado com o profano. Um sacrilégio, portanto.
Os israelitas de origem russa – mais de um milhão, chegados na década de 1990 depois do colapso do Império Soviético – até hoje falam a sua língua materna. Ainda que aprendam hebraico com uma rapidez impressionante, mantém um fortíssimo sotaque eslavo. O mesmo se passa com os judeus franceses, a imigrar em cada vez maior número para Israel.
Os judeus provenientes do mundo islâmico mantêm o sotaque mais próximo da norma hebraica moderna, mas é normal ouvi-los a falar árabe, turco ou persa. Os mais velhos ainda falam os dialetos típicos dos judeus desses países, como o quase desaparecido haketia ou ladino ocidental, proveniente do Norte de Marrocos. Do mesmo modo, os judeus turcos e gregos guardam ainda o ladino oriental. E os bukharianos, o seu dialeto de origem turca.
Também os judeus imigrados do mundo anglo-saxónico continuam a usar o inglês em abundância. Em Jerusalém e nos colonatos e cidades dos arredores, existem numerosas comunidades de falantes de inglês. Daí que muitos, mesmo depois de vários anos a residir em Israel, continuem com um nível de hebraico muito básico. E, mesmo os que atingiram um nível fluente, quase todos continuam com sotaques inconfundíveis que denunciam a sua origem.
Numerosos empregos, em especial nos negócios e na alta-tecnologia, usam o inglês como língua franca, como em qualquer lugar do mundo. Assim, são muitos os imigrantes que não sentem sequer necessidade de falar o hebraico. Uma piada em Efrat, o principal colonato da região de Gush Etzion, habitado principalmente por americanos, diz que “em Efrat, de vez em quando até é possível escutar hebraico”. De facto, desde os negócios nas lojas até numerosas aulas de Torá, praticamente tudo se pode fazer usando apenas o inglês. Em Israel, hebraico e árabe partilham desde a fundação do Estado o estatuto de idiomas oficiais, apesar das discussões recentes de promover o hebraico a único idioma oficial e passar a considerar o árabe como semi-oficial, como são o inglês e o russo.
Casado com uma brasileira, em minha casa fala-se quase exclusivamente português, ainda que pontilhado por numerosas palavras e expressões hebraicas. Para falar com a família em Portugal, vejo-me por vezes a baralhar os idiomas. Há palavras portuguesas que, pura e simplesmente, desapareceram do meu discurso, substituídas pelas correspondentes hebraicas. Na yeshivá, apesar de usar livros em hebraico, estudo diariamente com brasileiros e outros sul-americanos. Muitos colegas da yeshivá são norte-americanos e ingleses. Assim, num dia normal uso o português, o espanhol e o inglês. O hebraico acaba muitas vezes por ser reservado apenas para breves conversas de autocarro ou para ser atendido no supermercado.
A filha mais velha, de 2 anos, frequenta o infantário local e aprende rapidamente a língua nacional, trazendo palavras novas todos os dias. Muitos nomes de objetos, alimentos, e também as cores e os números são aprendidos originalmente em hebraico. Vejo-me cada vez mais a entremear o idioma de Camões com o idioma de Moisés. Portubraico, digamos.
* A senhora octogenária, natural da Hungria, sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, onde trabalhava na clínica do macabro Dr. Mengele. Depois da guerra imigrou para o Brasil, onde nasceram os seus filhos. As suas memórias estão publicadas em hebraico e português.
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