Terça-feira, 7 de Dezembro de 2010

Fé e esforço

align=justify>face=verdana size=2>A chuva, que tardava neste Outono israelita, chegou ontem. Porém, a situação de seca extrema, que se agrava de ano para ano, não se resolve com um dia de aguaceiros, por muito generosos que sejam (o que nem sequer foi o caso de ontem). Devido à grave seca que se vive em Israel, causada pela extrema falta de chuvas – que até agora haviam caído apenas durante um dia desde a Primavera passada –, e com o Outono quente e seco já quase no fim, o Rabinato-Chefe de Israel apelou às comunidades judaicas para rezarem pelas chuvas. Durante os três serviços religiosos diários – na noite, manhã e tarde, por esta ordem – os fiéis devem incluir na oração principal um excerto pedindo pela misericórdia divina para que se abram as portas do céu e caiam chuvas abundantes. E não apenas isso, foi também decretado um dia de jejum. align=center>
face=verdana size=1>Pescadores num cais de Tiberias, nas margens do Kineret, ou Mar da Galileia.
Veja-se o baixo nível das águas, em virtude da seca prolongada em Israel, 2009. align=justify>face=verdana size=2>Israel, ao contrário da generalidade dos outros países, não dispõe praticamente de rios. O único que corre o ano inteiro, o Jordão, não é mais de um ribeiro estreito e, durante o Verão, é tão pouca a água que nele corre que não passa de uma vala fétida e lamacenta. As chuvas são portanto essenciais para as reservas de água da nação. align=justify>face=verdana size=2>Na Yeshivat HaKotel, onde estudo, antes de Minchá (a oração da tarde), o Rosh (diretor) Yeshivá atual e o anterior falaram perante todos os alunos reunidos no Beit Midrash, a sala de estudos principal que funciona também como sinagoga. Lembraram a gravidade da condição de carência de chuvas e a relação, de acordo com as fontes judaicas, entre as bênçãos do céu e o cumprimento dos preceitos divinos. A seca é um sinal do alto, de que algo vai mal cá em baixo. align=justify>face=verdana size=2>Apesar da importância da mensagem dos sábios, faltou referir algo que, ainda que seja simples, talvez não seja compreendido por todos: a necessidade de poupança de água. Nenhuma palavra foi dita nesse sentido. Fiquei espantado pela ausência deste recado nas prédicas dos rabinos. Porém, não totalmente. Afinal, a sociedade israelita em geral e o público religioso em particular, estão em grande medida afastados das questões ambientais. align=justify>face=verdana size=2>Na região centro do país, nos arredores de Tel Aviv, a preocupação pela ecologia é algo que começa a fazer-se sentir, em especial nos subúrbios habitados por judeus originários da Europa e América do Norte. Para os judeus religiosos porém, a questão ecológica é relegada para um plano muito inferior na lista das prioridades. Talvez por estas questões estarem tão associadas aos esquerdistas, chilonim, os não-religiosos. align=justify>face=verdana size=2>Um dos exemplos do descurar da poupança de água entre os religiosos relaciona-se com o preceito de netilat yadaim, a lavagem ritual das mãos. A Halachá (ou Lei Judaica) prescreve a lavagem das mãos para efeitos rituais assim que a pessoa se levanta, representando uma purificação do corpo que acaba de "renascer do sono". O mesmo se passa antes de comer pão, representando a pureza que deve existir na hora da refeição. A Halachá prescreve que a quantidade mínima de água necessária para netilat yadaim é de um reviit, uma medida de contagem de líquidos equivalente a pouco mais de 90 ml. Outras opiniões defendem que essa medida equivale a 160 ml. Em qualquer dos casos, não é muita água. align=justify>face=verdana size=2>Para realizar o ritual de netilat yadaim usa-se uma natlá, uma caneca especial de duas asas. Uma natlá comum comporta cerca de um litro de água, ou até mais, bem acima da quantidade mínima necessária para a ablução das mãos. Porém, como se uma caneca cheia não fosse suficiente, alguns religiosos ainda são mais estritos no cumprimento desta prática, despejando sobre as mãos não apenas uma natlá cheia de água, mas duas. Um verdadeiro exagero, ainda mais nestes tempos de escassez. align=justify>face=verdana size=2>A sabedoria judaica ensina que a reza destinada a receber uma bênção divina deve ser acompanhada do esforço pessoal para atingir esse objetivo. A isso chama-se histadelut. E o esforço não é sinal de falta de fé. Afinal, ninguém se questiona se em caso de doença, seja falta de fé ir ao médico e tomar medicamentos, ao mesmo tempo que se reza por saúde. Então, alguém pensará que é falta de fé rezar para que as chuvas caiam em abundância e, ao mesmo tempo esforçar-se para poupar as escassas reservas existentes? align=justify>face=verdana size=2>Para além do aumento da reza, das boas ações e do estudo de Torá para receber a misericórdia dos Céus em relação às chuvas, deveria haver um esforço pessoal para não desperdiçar água. Não devemos esperar milagres nem basear a fé na sua eventual ocorrência. Só quando o homem dá o máximo de si mesmo, torna-se merecedor da ajuda divina.

publicado por Boaz às 10:24
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Domingo, 31 de Janeiro de 2010

A hora de deixar o ninho

Depois de alguns meses numa yeshivá em Israel, para a maioria dos alunos estrangeiros chega a hora de regressar aos seus países. Os estudantes americanos chegam, geralmente, de um ambiente religioso, com famílias observantes e comunidades bem organizadas. Muitos vêm para a yeshivá como alternativa a um ano de estudos na Yeshiva University, uma conceituada universidade judaica ortodoxa dos EUA, em Nova Iorque. O ano que estudam em Israel dá-lhes créditos para o curso universitário e, a anuidade na yeshivá é muito menor que a da universidade, por isso compensa financeiramente às famílias enviar os filhos para Israel.

Com os brasileiros e outros latinos a situação é bem diferente. A grande maioria dos alunos que chegam do Brasil fez teshuvá (tornaram-se religiosos) por via de algum movimento judaico juvenil – em geral o Bnei Akiva. Em alguns casos, esse desvio em direção à observância religiosa não foi acompanhado pelas respetivas famílias. Assim, a hora de voltar é um passo duplamente difícil.


Beit Midrash, o centro de estudos da yeshivá.
A quantidade e variedade de livros é impressionante.

Muitos chegam com um nível básico de hebraico, obtido durante os estudos nalgum colégio judaico. Em termos de conhecimentos de Torá a situação não é melhor. Alguns começaram há pouco a cumprir as leis do Shabbat e da alimentação casher. Apesar de “verdes” chegam com uma ânsia enorme de aprender.

Praticamente nunca tiveram contato com o Talmude, a base de todo o estudo na yeshivá. O choque inicial é enorme. A dificuldade com a intrincada construção das discussões talmúdicas e o obstáculo da língua aramaica – a língua da Guemará, parte principal do Talmude –, significam um avanço lento nos estudos. O “verdinho”, um popular dicionário aramaico-hebraico-inglês, é consultado a cada duas palavras do texto da Guemará.

Nas primeiras semanas, a frustração é evidente em muitos destes alunos. Em conversas com os alunos mais experientes, alguns confessam pensar em desistir. Raramente o fazem. Na yeshivá o tempo passa rápido e uma clara progressão é visível logo ao fim de um mês. Aos poucos, o “verdinho” é posto cada vez mais de lado. A repetição dos termos talmúdicos e a classe diária sobre o assunto em discussão ajudam a entrar na dinâmica da Guemará.

O Shabbat é um dos tempos mais extraordinários na yeshivá. O ambiente de festa, com canções e até mesmo dança durante as refeições festivas deixam uma marca profunda. Com o tempo, alguns dos que viam a sua estadia na yeshivá como algo temporário decidem não regressar definitivamente a casa. Na verdade, decidiram que a sua casa é em Israel e voltar para um ambiente não religioso torna-se impensável.

Para os que ficam, várias questões se colocam: tratar já do processo de aliyá (a imigração para Israel) ou permanecer por enquanto como residente estrangeiro? Continuar na yeshivá mais um ou vários anos, ou sair e ir para a faculdade? E a entrada no serviço militar – agora, ou adia-se mais um pouco?

Mesmo os que saem da yeshivá e tomam algum outro caminho em Israel – exército, trabalho ou faculdade –, mantêm um contacto com o local e os amigos que lá fizeram. Nas horas vagas dos estudos lá fora ou nos dias de licença militar regressam aos bancos do Beit Midrash, a sala de estudos principal. Com frequência passam o Shabbat na yeshivá ou em casa de um rabino ou de um aluno já casado. Todos se reencontram nos casamentos de amigos. E a yeshivá é uma fábrica de casamentos!

Ainda assim, há os que têm mesmo de voltar para os seus países. Para terminar a faculdade que ficou “trancada”. Para o trabalho deixado em pausa. Para a família que insiste que voltem. As semanas que antecedem a partida são de grande ansiedade. A preocupação maior é manter o nível elevado que foi conseguido na yeshivá. Compram livros indispensáveis para continuar os estudos de Torá, livros impossíveis de encontrar fora de Israel (ou quando se encontram à venda são caríssimos!). Estudam como casherizar a cozinha da família, o que se pode ou não pode comer fora de casa, como respeitar o Shabbat quando a família não é religiosa. Fazem-se contatos com rabinos e famílias religiosas nas suas cidades, para que os possam acolher no Shabbat e nas festas.

De volta a casa, uma decisão unânime é dedicar um tempo para trabalhar com kiruv – a ajuda aos jovens judeus para se aproximarem do Judaísmo. (Kiruv significa aproximação, em hebraico). A partilha dos conhecimentos e experiências da yeshivá são uma excelente forma de atrair os jovens para aderir a uma forma de vida comprometida com os valores judaicos.

Em regra, o regresso é apenas temporário. O tempo suficiente para terminar os estudos e ir convencendo a família a deixá-los fazer aliyá. Aquilo que conquistaram com os meses passados na yeshivá é demasiado precioso para se arriscar a deixar perder num ambiente pouco cooperante com a observância judaica.

É um orgulho ver a incomparável metamorfose por que passam os novos alunos que chegam. Como crescem e se desenvolvem humana e espiritualmente. São muitos os milagres produzidos nos bancos da yeshivá.

publicado por Boaz às 22:39
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Quinta-feira, 20 de Novembro de 2008

O Mundo inteiro

Nas últimas semanas tenho andado ocupado num novo projecto. Consiste num email de Divrei Torá (textos de assuntos judaicos) escritos pelos alunos de língua portuguesa da Yeshivat HaKotel, onde eu estudo. Eu sou o responsável pelo design, a edição e a montagem dos textos.

Todas as semanas, quatro alunos escrevem textos: sobre a parashat ha'shavua (a porção semanal da leitura da Torá), lei judaica, ética judaica e uma história inspiradora. Aos poucos, o email começou a ser enviado para alguns brasileiros residentes em Israel e para alguns residentes no Rio de Janeiro. Esta semana - já saiu o número 2! - o email foi enviado também para alguns judeus em Portugal.

Numa altura em que tantos judeus estão completamente afastados da Torá, este email é mais uma tentativa de (re)aproximar - mesmo que seja de uma forma leve - alguns desses judeus aos valores judaicos.

Tal como ensina o Talmude: "Aquele que salva uma alma de Israel é como se salvasse o Mundo inteiro". Existem milhares de Mundos que simplesmente não podem ser perdidos. Não dá para fazer o papel de espectador.

publicado por Boaz às 23:07
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Quarta-feira, 26 de Março de 2008

Três vezes Purim

Este ano, a festa judaica de Purim festejou-se três dias seguidos, da passada sexta-feira a Domingo. Normalmente, dura apenas um dia. No entanto, sempre que a data da festa coincide com o Shabbat e para evitar violar as regras do Shabbat, as várias tradições da festa são divididas por três dias. É o Purim Meshulash, o "Purim Triangular".

Purim é o festival que lembra a salvação dos Judeus da Pérsia, sobre os quais havia sido decretada a aniquilação, às mãos do vizir Haman. A ordem para matar todos os judeus do reino estava marcada para aquele dia. Graças à intervenção da Rainha Ester, a esposa judia do rei Ahashverosh (Assuero ou Xerxes), os judeus conseguiram ser salvos.

A história é contada no Livro de Ester. Escrito num rolo de pergaminho, conhecido por Meguilat Ester, o conto é lido nestes dias em todas as sinagogas do Mundo. Um dos costumes mais populares da festa, durante a leitura pública da Meguilá, é fazer barulho de cada vez é lido o nome de Haman. Matracas, cornetas, assobios ou simplesmente bater com as mãos nas mesas, tudo serve para abafar o nome do perverso vizir.

A festa é comparada (erradamente) com o Carnaval – chamam-lhe o Carnaval Judaico, tal como a Hannuka chamam o Natal Judaico – apesar de não haver a mínima relação entre nenhuma das festas, além da proximidade no calendário. Tanto Purim como Hannuka são bem mais antigas que as festas cristãs celebradas na mesma época.

É o dia das máscaras. As máscaras simbolizam que o Mundo é mostrado ao contrário. Uma espécie de inversão de papeis e identidades. A oposição entre o que se revela e o que se esconde. Tal como Deus – aparentemente – esteve escondido, na história de Ester e dos Judeus da Pérsia. Tal como houve, no dia de Purim original, uma inversão de sortes. Os judeus, marcados para serem mortos, puderam defender-se e todos foram salvos.

É ainda o dia da bebida. Na yeshiva a festa é "regada" com alguma moderação, mas sempre há alunos que por conta própria, decidem "encher a cara", com as consequências esperadas. No dia seguinte, os empregados de limpeza da yeshiva têm trabalho redobrado. O after-party não é agradável para os exagerados. Diz-se que é em Purim que, nas yeshivot, são proclamados os melhores discursos dos rabinos. Ajudada pelo álcool, a inspiração é acrescida. "Entra o vinho, sai o segredo". E com ele, também cai a máscara. Revelam-se as verdadeiras personalidades.

No baile que tem lugar na yeshiva, alunos e rabinos dançam horas e horas, numa expressão de alegria impressionante. É a alegria da salvação, da memória da salvação dos Judeus da Pérsia, e de outras salvações ao longo dos séculos da história judaica. É a alegria da certeza de, aconteça o que acontecer, quaisquer que sejam os decretos, existe um Guardião que zela pelo Povo de Israel. Mesmo que pareça estar oculto.

publicado por Boaz às 22:06
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Quinta-feira, 13 de Março de 2008

Órfão de filho

Na maioria – se não mesmo na totalidade das línguas do Ocidente, não existe um termo para denominar um progenitor que perde um filho. Alguém que perde o pai ou a mãe é órfão. Alguém cujo cônjuge morre é viúvo. No entanto, não existe termo para quem perde um filho. Talvez a incapacidade de definir tal situação extrema, tenha deixado essa lacuna no dicionário. Em hebraico, essa palavra existe: shakul, um termo que traduz a ideia de desamparo ou solidão.

Dias depois da tragédia na yeshiva Mercaz Harav, o ambiente na Yeshivat Hakotel, onde eu estudo, continua muito pesado. Mesmo entre os brasileiros, que pela sua natural maneira de ser, costumam mostrar-se mais descontraídos que a maioria dos outros povos. Podia ter sido aqui o ataque, creio ser o sentimento geral.

Acompanhado do choque adicional de um dos jovens mortos, Yohai Lifshitz, ser filho de um dos directores da minha yeshiva. No momento do enterro, o Rav Tuvia Lifshitz, pai de Yohai disse: "agradecemos a Deus pelo privilégio de termos vivido com Yohai durante 18 anos". Parecerá uma resposta fria para alguém que no dia anterior perdera um dos seus filhos. Parecerá um desprendimento absurdo em relação aos filhos, à vida. Parecerá, mas apenas para quem não acredita em Deus.

Ontem, terça-feira, o grupo dos alunos sul-americanos da yeshivat Hakotel – no qual eu estou incluído – foi prestar condolências ao Rav Lifshitz. Na incapacidade de receber tantos visitantes na sua pequena casa, foi montada uma tenda na varanda do telhado. Sentado numa cadeira baixa, o pai de Yohai recebeu durante vários dias milhares de pessoas, chegadas de todo o país. Assim que cheguei, não consegui deixar de reparar no que se passava no telhado de uma casa vizinha. Um muçulmano rezava, virado para sul, na direcção de Meca.

Sendo impossível de imaginar a dor da perda da família, era todavia incrível a calma emanada da face do pai enlutado, mesmo passados alguns dias da tragédia de Mercaz Harav. O Rav Tuvia falou do exemplo do filho, do amor que tinha pelo estudo e do alto valor que Yohai dava ao tempo. O tempo que lhe foi tão tragicamente cortado. A confiança inabalável no Criador mostrada pela família é profundamente inspiradora.

As respostas teológicas perante uma tragédia destas não são fáceis de aceitar. Todas as coisas e criaturas, seres humanos incluídos, têm um papel e uma missão no Mundo. Quando a sua missão termina, essa coisa, criatura, pessoa, cessam de existir. Yohai e os seus sete companheiros de estudo terminaram a sua missão. Reuniram-se a Deus, a causa inicial de tudo. O facto de terem morrido enquanto estudavam Torá, o mais valioso dos preceitos judaicos, encerra na sua partida terrena um significado especial.

No Judaísmo não existe o culto da morte. Em vez de manifestações violentas nas ruas, das yeshivot saíram apelos ao fortalecimento do estudo de Torá. Na Yeshivat Hakotel definiram-se períodos especiais diários para o estudo de ética judaica e do tratado talmúdico de Meguilá, ligado ao festival de Purim que se aproxima no calendário. É um tempo de introspecção e de melhoramento individual, dominado por todas as perguntas difíceis que podemos (e devemos) fazer nestes dias, mesmo apenas para nós próprios.

Enquanto isso, no bairro de Jabel Mukaber, na zona oriental de Jerusalém, a família do terrorista morto, um árabe de nacionalidade israelita, montou uma tenda para receber aqueles que lhe queiram prestar homenagem. E hasteou as bandeiras do Hamas e do Hezbollah. (A polícia israelita retirou finalmente as bandeiras, que vergonhosamente permaneceram hasteadas vários dias). Alaa Abu D'heim é mostrado como um herói. O "heroísmo" celebrado não é aquele que advém da salvação, da ajuda ao próximo, ou da vida, mas da destruição e da morte. Uma das formas mais seguras de medir o carácter das pessoas (e dos povos), é saber quem são os seus heróis. Eles exemplificam o seu sistema de valores.

Tal como os pais de Yohai, também os pais de Alaa são shakulim, desamparados. Porém, enquanto dos pais de Alaa enaltecem o seu "martírio" sangrento que causou oito mortes entre os inimigos; os pais de Yohai enaltecem a vida do filho e o seu último momento, estudando, debruçado sobre o tratado talmúdico de Menachot, o qual descreve um dos tipos de sacrifícios oferecidos no antigo Templo de Jerusalém. A diferença entre Alaa e Yohai é tão evidente como a que existe entre a escuridão absoluta e a luz.

publicado por Boaz às 22:20
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Sexta-feira, 7 de Março de 2008

Nada é sagrado

Na noite de ontem, quinta-feira, houve um ataque terrorista numa yeshiva de Jerusalém. Há quase dois anos que o terror não chegava à capital. Dois homens armados de metralhadoras AK-47 entraram no recinto de Mercaz Harav, uma das maiores yeshivot de Israel. Na biblioteca, dispararam durante vários minutos sobre os alunos que estudavam. Segundo a polícia, terão sido disparados entre 500 e 600 tiros. Até serem abatidos por um soldado que, da rua, ouvira as rajadas de tiros.

No chão ficaram mortos oito alunos da yeshiva. Morreram enquanto estudavam Torá. Testemunhas descreveram o cenário como "um matadouro", com os livros sagrados jazendo no chão, junto dos alunos assassinados.

Depois da operação militar em Gaza, destinada a destruir a infra-estrutura terrorista do Hamas, os terroristas palestinianos prometeram vingança. A escolha de Mercaz Harav com alvo, é perfeitamente calculada. Tal como o World Trade Center representava a essência da sociedade americana, a yeshiva Mercaz Harav é um dos baluartes espirituais da sociedade israelita. É o principal centro de estudos judaicos da linha do Sionismo Religioso. Fundada pelo grande Rabino Avraham Hacohen Kook ainda antes da Independência de Israel, estabeleceu-se como uma das mais exigentes yeshivot do Mundo. Dos seus bancos saíram muitos dos maiores sábios do Judaísmo do século XX.

Na Yeshivat HaKotel, onde estudo, do outro lado da cidade, o ambiente era naturalmente muito carregado. Ainda mais, porque um dos alunos mortos, Yohai Livshitz, de 18 anos, era filho de um dos directores da Yeshivat Hakotel.

Nas noites de quinta para sexta-feira é costume fazer mishmar, ou seja, um grupo de alunos fica acordado toda a noite, a estudar no Beit Midrash, a sala de estudos principal. Na noite do ataque, o mishmar não se realizou. O grande tacho de chulent, um cozido de batatas e grão, também costumeiro da quinta-feira à noite, não foi preparado. Habitualmente ruidosa nas noites de quinta, imperava desta vez um silêncio pesado. No dia seguinte, a reza matinal foi um momento difícil. Coincidindo com o primeiro dia do mês judaico de Adar, por excelência o mês da alegria, foi impossível conter as lágrimas, mesmo durante a reza especial de Halel, entoada só nos dias mais alegres.

Uma yeshiva é, por excelência, o local mais respeitado no Judaísmo. A estima dada ao estudo da Torá, centrado exactamente na instituição da yeshiva, torna-a lugar de referência na sociedade judaica. Aí, os jovens aprendem desde cedo os princípios judaicos. Daí emanam os conhecimentos dos grandes Sábios. Em cada yeshiva se perpetua a milenar cadeia tradição judaica.

Qual é o limite do campo de batalha? Ao longo das décadas de terrorismo palestiniano, ao contrário de uma guerra tradicional, os alvos civis têm sido a preferência do terror. Autocarros, estações de transportes, hotéis, cafés, restaurantes, centros comerciais. Em poucas ocasiões foram escolhidos alvos militares para os ataques.

Como reconhecer legitimidade numa causa onde não há limites para os seus alvos? Como se pode ser brando, querer manter o diálogo? Em Gaza saíram à rua para festejar o massacre. Em Nova Iorque, a Líbia impediu uma nota de condenação do atentado pelo Conselho de Segurança da ONU.

publicado por Boaz às 10:26
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Domingo, 20 de Janeiro de 2008

Shabbat fora, cá dentro

Este foi de novo um Shabbat de yeshiva fechada. Não tendo conseguido encontrar um local alternativo para passar o Shabbat, acabei por ter de ficar sozinho na yeshiva. Comprei chalá, uma garrafa de sumo de uva natural, uma caixa de houmous e um bolo. A chalá é o pão tradicional comido no Shabbat. O sumo de uva natural é a alternativa não alcoólica para fazer o kiddush, a bênção especial do Shabbat. O houmous, uma pasta feita de grão e creme de sésamo, é o acompanhamento ideal para o pão. O bolo, apenas uma guloseima. Em honra do Shabbat.


Kotel, no início do século XX.

Com o frio que tem fustigado Jerusalém nas últimas semanas, ficar na yeshiva, que é como quem diz, ficar em casa, até soube bem. Com o Kotel, o Muro Ocidental ou das Lamentações, ao pé da porta, foi o meu local de escolha para rezar. Em Kabbalat Shabbat – a oração que antecede a oração da noite de Shabbat e durante a qual recebemos a santidade do dia – encontrei alguns amigos da yeshiva que tinham conseguido lugar num hotel, onde iam animar um grupo de jovens chegados do Brasil num programa religioso.

Decidi ir jantar a casa do Rabino Machlis, que recebe toda a pessoa que queira um lugar para comer ao Sábado, o que implicava uma caminhada de mais de meia hora. Para me proteger do frio que teria de aguentar durante a caminhada, regressei à yeshiva para vestir umas ceroulas por baixo das calças – desculpem-me a indiscrição e a violação grosseira da moda, mas este frio não está mesmo para brincadeiras.

Em boa hora regressei à yeshivá. Acabei por encontrar Abraão, um brasileiro de Manaus sozinho em Israel e recém-chegado a Jerusalém para trabalhar na yeshiva, que também não tinha onde comer. E ele, ao contrário de mim, não tinha comprado nada para comer no Shabbat. Haviam-lhe falado da alternativa do Rabino Machlis, mas não sabia como chegar ao local.

Cruzando o Bairro Arménio, saímos da Cidade Velha pela Porta de Jaffa, passámos pelo fundo do bairro de Mea Shearim até Maalot Dafna, um bairro de judeus ortodoxos separado de um bairro árabe apenas por uma avenida. Por ser Shabbat, espantou a Abraão ver tantos carros na rua, ainda mais em Jerusalém. Nem todos os Jerusalemitas são judeus religiosos, além de aquela avenida ser o acesso principal aos bairros árabes do leste da cidade.

Frente à casa do Rabino, tivemos de esperar cerca de meia hora até que abrissem a porta. Depois de duas horas de muita comida, cantigas e palavras de Torá do Rabino Machlis e de alguns convidados, regressámos pelo mesmo caminho para a yeshiva. Eu avisei, depois da longa caminhada de volta, o farto jantar pareceria nem sequer ter existido. Abraão procurou alguma comida na cozinha da yeshiva para "matar o rato".

Na tarde seguinte, depois do almoço que fiz sozinho no meu quarto, com o que havia comprado, não havia tempo para dormir. É normal dormir algumas horas nas tardes de Shabbat. Os dias curtos de Inverno não o permitem. Após o almoço desci de novo ao Kotel para rezar Minchá, a oração da tarde e estudar um pouco.

O Sábado é o dia mais animado no Muro Ocidental. Gosto de ficar sentado na praça a olhar as pessoas que passam. Judeus de todas as correntes, vestidos com as suas melhores roupas concentram-se no Kotel para rezar. Uns de streimel (chapéu de pelo), outros de chapéu negro, outros ainda de kippá tricotada. Os turistas e os judeus não religiosos usam as horrendas kippot de papel disponíveis à entrada da área de orações. Solução de emergência para os desprevenidos e "os afastados".

É um privilégio poder estar aqui todos os dias. Ainda mais no Shabbat. Na yeshiva é costume descermos as escadas todos juntos, mais de uma centena de estudantes, quase em pelotão, a cantar, até ao Muro Ocidental. Muitas pessoas aplaudem à nossa passagem, emocionadas pela expressão de fé e alegria. Já quase se tornou motivo de atracção turística, o grupo de estudantes de yeshiva que cantam pela Praça do Muro antes de kabbalat Shabbat.

Para a semana, se Deus quiser, volta o Shabbat dentro da yeshiva. A descida ao Kotel e o Kabbalat Shabbat, todos juntos. E com menos frio, espero.

publicado por Boaz às 12:26
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Domingo, 29 de Julho de 2007

Força

A yeshivá está de férias. Nos últimos dias de aulas e nas duas primeiras semanas de interrupção, recebemos um grupo de cerca de uma dúzia de rapazes do Bar Ilan, um colégio judeu do Rio de Janeiro. Apesar de provenientes de famílias judias e frequentarem um colégio judeu, a maioria deles não estavam habituados a um ambiente religioso. Antes de virem para a yeshiva, passaram vários dias a passear por todo o Israel.

Foi tarefa dos alunos de língua portuguesa da Yeshivat HaKotel recebê-los e tentar incutir-lhes um pouco mais de Judaísmo prático, para lá do Judaísmo cultural ao qual estão mais ligados.

A mim couberam-me dois rapazes tranquilos, Nahum e Moti (nomes fictícios). O animador do grupo pediu-me para estudar mishnayot com eles. Tarefa aparentemente fácil para alguém habituado ao ambiente religioso e ao estudo das fontes judaicas. No entanto, para eles mesmo o nível básico do estudo estava muito para lá do seu interesse.

Ao fim de três mishnayot, e não tendo o mínimo feedback dos meus companheiros de estudo, decidi fechar o livro e pedir sugestões de temas para estudarmos ou apenas para conversarmos. Moti disparou uma série de perguntas: "O que é o demónio? O demónio existe?"; "Porque é que Deus permitiu o Holocausto?"; "Porque é que todo o mundo odeia os judeus?". Caramba – pensei – estas são perguntas para rabinos, não para mim! Tentei responder às suas questões o melhor que sabia. Afinal, já estudo na yeshiva há mais de um ano, já tenho de ter algum tipo de resposta até para estas perguntas bicudas.

Dois dias depois, fizemos uma vista ao Yad Vashem, o Museu Memorial do Holocausto de Jerusalém. Como não poderíamos entrar como um grupo único, fomos divididos em pares ou trios: um aluno da yeshiva para um ou dois dos rapazes do colégio. De novo calhou-me o Nahum. Esta seria a minha quinta visita ao Museu, e a segunda como guia.

Nós os dois fomos os primeiros a entrar. Tentei dar-lhe uma perspectiva geral do museu e da história que ele encerra. Obviamente que Nahum já vira muitas das imagens e ouvira histórias como as que são mostradas no Yad Vashem, mas ficou impressionado pela presença de objectos autênticos nas várias salas do museu. Candeeiros públicos, bancos de rua e pedras da calçada verdadeiros numa reconstituição de uma rua do gueto de Varsóvia. As cruas fotos de um massacre de judeus numa aldeia do Leste da Ucrânia. Uma grade sobre a qual eram incinerados cadáveres no campo de concentração de Majdanek. Aos poucos, todos os outros companheiros de visita nos foram ultrapassando, e acabámos por ser os últimos a terminar a visita. Já na praça do Museu, encontrámos o resto do grupo reunido a rezar a oração da tarde. Como se sentiriam Nahum e os outros rapazes a rezar depois de visitar um local como aquele? Afinal, a pergunta deveria repetir-se vezes sem conta: "Porque é que Deus permitiu o Holocausto?".

Apesar de já ter visitado o museu por várias vezes, descobri coisas que nunca tinha visto. Um pequeno placard contava a história de cerca de 2000 judeus polacos convertidos ao Cristianismo e que, mesmo assim, foram enclausurados no gueto de Varsóvia e finalmente deportados. E sem qualquer distinção de fé, gaseados em Treblinka como todos os seus companheiros de clausura.

Dias depois, os animadores do grupo resolveram mostrar um vídeo-clip de uma canção israelita, "Chazak amenu" – Forte é o nosso povo. Mostrava imagens de Israel e manifestações pró-Israel ocorridas em vários países durante os anos da Intifada, quando de todo o Mundo choviam críticas a Israel. Demonstrava que, em tempos de infortúnio, o Povo Judeu se une, independente das suas diferenças. Religiosos e seculares, ortodoxos e reformistas, de Israel e da Diáspora. Unidos à força pela ameaça externa. Voltei a recordar a história dos tais judeus que renegaram a fé de Abraão e que mesmo assim não tiveram melhor sorte que os outros no gueto.

Reparei que nestes dias, Nahum, habitualmente pouco interessado, se mostrava mais concentrado durante as horas de reza.

Não sei que impacto terá a visita do grupo a Israel e o que levarão para o Brasil, para lá de algumas dezenas de fotos e recordações de turista para a família. Mas se depois desta experiência, todos eles se casarem com mulheres judias e assim fizerem frente à tendência de assimilação dos judeus fora de Israel, já terá valido o esforço. É que essa é, nas últimas décadas a maior ameaça ao Povo de Israel.

Gostava que de Portugal viesse um grupo de jovens para viver o mesmo tipo de experiência cá em Israel. Só é preciso um patrocinador e vontade da comunidade.

publicado por Boaz às 16:51
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Terça-feira, 27 de Março de 2007

De costa a costa

Israel é um país muito pequeno. Em termos comparativos, é mais pequeno que o Alentejo. Apesar disso, a variedade de paisagens é impressionante. Desde o enorme deserto do Neguev, a sul, que constitui mais de metade da área do país. Às montanhas do centro - verdejantes a norte e secas a sul de Jerusalém. E a Galileia, o norte do país. Verde, com colinas e vales férteis.

Os israelitas, desde os pioneiros judeus que chegaram desde o século XIX, apreciam muito as caminhadas ao ar livre. É comum encontrar grupos de mochileiros percorrendo as muitas áreas de paisagem protegida distribuídas por todo o território. Por isso, trilhos bem assinalados para caminhantes existem por todo o lado.

No início das férias da Páscoa Judaica, a Yeshivat HaKotel organizou um passeio para os estudantes estrangeiros: uma caminhada de três dias pela Galileia. Conhecido como Yam le'yam o trajecto liga o Mediterrânico ao Mar da Galileia (conhecido localmente por Kinneret). São 68 quilómetros de caminhada.


De um mar ao outro, de mochila às costas.

Começámos em Achziv, uma praia rochosa poucos quilómetros a sul da fronteira libanesa. Rumando a oriente, passámos primeiro por extensas plantações de bananeiras e abacateiros. Um detalhe chamou-me à atenção: os sinais informativos escritos em hebraico, árabe e... tailandês! A razão para isso é o facto de muitos dos trabalhadores das plantações serem naturais da Tailândia.

Leitos secos de ribeiros, cheios de grandes calhaus rolados foram alguns dos trilhos mais difíceis de transpor. Mais para o interior, os ribeiros estavam em pleno e com cuidado, aproveitando as pedras alinhadas, havia que atravessá-los, procurando não molhar os pés. Aos poucos, entrámos nos vales cobertos de florestas, até Monfort, um castelo medieval construído por Cruzados franceses. Aí o percurso torna-se acidentado e a trilha passa a ser um estreito carreiro de pedras escorregadias entre uma parede vertical e um precipício. Impróprio para os que sofrem de vertigens.

Por vezes tive de acalmar um companheiro mais nervoso com medo das alturas. A cada passo certificava-se que eu estava bem próximo dele. Ora segurando-o pela mão, ora incentivando-o a continuar.

No final do primeiro dia, acampámos nos arredores da cidade de Maalot, num descampado a mais de dois quilómetros daquele que deveria ter sido o nosso primeiro acampamento nocturno. Durante a noite, a cada meia hora revezavam-se grupos de dois na guarda do acampamento contra eventuais ladrões. Pela primeira vez na vida, empunhei uma arma, apesar de não saber atirar e de a arma em questão ser tão antiquada que creio mesmo que só serviria para matar pardais. De qualquer forma, era só mesmo para intimidar alguém com intenções menos nobres...

O segundo dia começou tarde. Devido à distância em relação ao ponto programado para a partida, a organização resolveu levar-nos de carro até ao local. Grupos de três, a cada 7 minutos. Eu fui dos últimos a ser levado, mais de hora e meia depois dos primeiros terem partido. Um atraso que teria de ser compensado por um passo mais rápido durante a caminhada do dia.

O percurso do segundo dia era o mais agradável. Vales belíssimos com ribeiros tranquilos e algumas cascatas. Por várias ocasiões passámos por vacas pachorrentas, que pastavam indiferentes à nossa invasão do seu território. Quase no final, o trilho incluía a subida à segunda montanha mais alta de Israel, o Monte Meron. E de lá, uma descida - apressada para aproveitar as últimas horas de sol do final da tarde - até ao acampamento, situado a poucos metros do santuário onde está sepultado o Rabbi Shimon Bar Yohai, um famoso rabino que viveu há quase 2000 anos. Consegui chegar e montar a minha tenda ainda nos últimos momentos de luz.

Apesar de todos estarem munidos de mapas, um grupo de quase uma dúzia de caminhantes perdeu-se da trilha e terminou numa aldeia drusa, a 7 quilómetros do local correcto. Druza, por sorte, pois se fosse uma aldeia árabe, algo de trágico poderia ter-lhes acontecido. É que em muitas localidades árabes da Galileia, os judeus não costumam ser bem recebidos.

O último dia, haviam-nos prometido, seria o mais fácil. Apesar de a distância ser de 28 km, enquanto nos dois dias anteriores havia sido de 20 km por dia, o percurso seria «apenas descer uma montanha». Com esta descrição, muitos de nós, apesar de maltratados pelas condições do caminho já percorrido, ficaram convencidos e decidiram não desistir.

No entanto, aquilo que era "apenas" a descida de uma montanha, revelou-se o mais complicado dos trajectos. Carreiros estreitos e escaladas à beira do abismo. Um passo em falso e adeus... Matagais de urtigas e canaviais. Pernas e braços arranhados. Isto tudo debaixo de um sol que, ao contrário dos dias anteriores, se fazia sentir forte. Na pausa a meio do caminho, as reservas de água de boa parte do grupo já se haviam esgotado.

A solução foi ir até à cidade mais próxima comprar garrafas de água para todos. Era impossível caminhar os restantes 11 quilómetros "a seco". No final do dia, apenas alguns chegaram ao destino escolhido. Muitos tiveram de ser recolhidos pelo carro de apoio, espalhados no trajecto. Para todos, numa praia do Mar da Galileia havia um churrasco à espera.

Mais do que um desafio físico extremo - que eu não sei se me atreveria a repetir - o Yam le'yam foi uma experiência humana inexcedível. A camaradagem entre todos foi extraordinária. Actos como esperar pelos companheiros que ficavam para trás, dar uma mão para ajudar a subir um trilho mais difícil, partilhar da comida e da água, palavras de encorajamento, avisar sobre algum perigo do caminho, foram constantes. Cada um teve a perfeita consciência de que não poderia continuar sozinho.

Existe uma distância (a todos os níveis) entre os alunos americanos e ingleses e os do grupo de língua portuguesa da yeshiva. No final, tenho a certeza que ficámos todos mais unidos, independentemente do grupo a que cada um pertence.

publicado por Boaz às 17:17
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Segunda-feira, 12 de Março de 2007

O valor do tempo

Há quase seis meses, em meados de Setembro, mudei-me para a Yeshivat Hakotel, na Cidade Velha de Jerusalém, uma das mais importantes yeshivot de Israel. A início, e apesar de já haver passado quase nove meses no Machon Meir, outra yeshiva de Jerusalém, a perspectiva de estudar na HaKotel, me fazia pensar se estaria realmente à altura de tal desafio.

Nos nove meses no Machon Meir havia estudado no Departamento Espanhol e Português, com um contacto muito limitado com a língua hebraica e ainda menos com o estudo profundo do Talmude Babilónico, uma das obras mais importantes do Judaísmo, que serve de base à lei judaica.

Em princípio deveria ter entrado para a nova yeshiva apenas em Dezembro, quando estava prevista a chegada de alguns estudantes brasileiros que seriam os meus companheiros de estudo. Porém, inesperadamente, no início de Setembro do ano passado, o director do programa em português da Yeshivat HaKotel anunciou-me que me poderia mudar em meados do mês, três meses antes do previsto.


Yeshivat Hakotel. O estudo de Torah vale por todos os preceitos

A chegada foi algo próximo da tragédia. O quarto que nos foi determinado era ocupado por um monte de lixo, no meio do qual viviam 3 estudantes - dois israelitas e um inglês. Habituados e auto-obrigados a viver na ordem, tanto eu como Michel, o meu novo companheiro de quarto e de estudos brasileiro, passámos as primeiras horas daquela tarde de 17 de Setembro de 2006 a limpar o quarto. O chão mal se via com tantas garrafas vazias ou meias cheias deitadas por ali. Quando, algumas horas mais tarde chegaram os outros 3 ocupantes do quarto, não puderam reconhecer o lugar.

Àquele que eu percebi ser o "bagunceiro" principal, entreguei um ultimato, a fim de manter a ordem: "se eu encontrar uma garrafa ou uma peça de roupa suja no chão, não interessa de quem seja, prometo que a ponho em cima da tua cama!". A ameaça resultou, e daí até à saída de Sam, o quarto manteve-se impecável. Uma prova que, por vezes, uma posição inicial de força ajuda a instaurar a paz e a ordem...

O outro choque, bem mais forte que o da desordem dos aposentos, foi ao nível dos estudos. Iríamos estudar entre as 9 e as 23 horas, de Domingo a Quinta e na maior parte, em hebraico. O foco principal do estudo seria a secção Shabbat do Talmude Babilónico - um conjunto de várias dezenas de livros escritos em hebraico antigo e aramaico (uma língua hoje extinta, próxima do hebraico), entre os anos 200 e 500 da nossa era.

Na primeira semana, apesar de passarmos várias horas ocupados com o Talmude, Michel e eu avançávamos apenas algumas linhas na folha da Gemará. A pouca experiência no assunto, aliada à debilidade do hebraico e ao completo desconhecimento do aramaico eram para nós obstáculos quase intransponíveis para o progresso nos estudos. Por isso tudo, as conclusões a que chegávamos, ao fim de várias horas de estudo eram, invariavelmente equivocadas. Ainda mais, a nossa entrada na Gemará havia sido um autêntico "mergulho de cabeça", com estudo por livros em que o hebraico não contém nem os sinais das vogais nem sequer a pontuação das frases.

Todavia, aos poucos, a repetição das expressões, a ajuda do dicionário e o uso cada vez mais frequente do hebraico no dia a dia, fizeram-nos avançar de tal modo, que alguns meses depois, já éramos capazes de ler várias linhas sem consultar o dicionário, perceber as ideias, confrontá-las e tirar as conclusões.

O crescimento ao nível espiritual e de estudos, nestes seis meses é, no entanto, impossível de calcular. A aquisição do hábito e da capacidade (e mesmo da sensação de necessidade) de estudo intensivo e ao nível individual talvez sejam os melhores resultados destes meses.

Há pouco tempo Michel comentava-me que quase não se reconhecia após os meses que havia passado na yeshiva. As mudanças haviam sido demasiado fortes e rápidas. Para Michel e os outros brasileiros que entretanto chegaram e após uns meses voltaram para o Brasil, o desafio maior é manter um caminho de estudo e de prática religiosa, ao mesmo tempo quando estão imersos num ambiente tão hostil a esse mesmo estudo e prática. As bases adquiridas pela sua passagem pela Yeshivat HaKotel serão uma boa ajuda na persistência nesse caminho.

Por mim, continuarei por mais algum tempo, no mínimo uns meses, ou mesmo uns anos, a estudar. Ainda não estou seguro com que objectivo concreto me manterei no estudo. No entanto, o estudo de Torá por si mesmo, sem qualquer segunda intenção, é o nível mais elevado de dedicação à descoberta da palavra Divina.

Ao olhar para trás interrogo-me: é possível saber o valor de seis meses?

publicado por Boaz às 11:45
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Quinta-feira, 14 de Setembro de 2006

Sair de casa

Yeshivat HaKotel, situada junto ao Muro Ocidental, em Jerusalém, é uma das maiores yeshivot do Mundo

No próximo Domingo vou mudar de casa. Deixo o lugar que foi o meu lar durante quase um ano, a yeshiva Machon Meir. Não vou para muito longe, apenas a 20 minutos de autocarro, até à Cidade Velha de Jerusalém.

Não é fácil deixar para trás o lugar onde aprendi realmente a ser um judeu comprometido. Foi com esta bagagem que me aguentei mais de um mês em Portugal, fora de um ambiente judaico. Antes de entrar para o Machon Meir, por exemplo, apenas por uma vez tinha passado um dia em que havia feito as três orações diárias requeridas pelo Judaísmo. Rezar com minyan e estudar Torá passou a fazer parte do meu dia-a-dia. Judaísmo autêntico.

Desde o primeiro dia fui tratado com todo o respeito e o facto de ainda não ser judeu, nunca foi obstáculo para os estudos. Aqui, judeus e futuros-judeus estudam sem qualquer separação. Desde o início que a maioria passou a chamar-me logo pelo meu nome judeu - Boaz -, o nome que já havia escolhido, meses antes de completar o processo de guiur (conversão).

Foi de entre os estudantes da yeshiva que escolhi aquele que seria o meu sandak - a pessoa que me acompanhou durante a operação/cerimónia de circuncisão - uma espécie de padrinho. Foi cá também que recebi os primeiros abraços no dia em que completei o meu guiur.

Todavia, nem tudo foi fácil na vida na yeshiva. O pior foi mesmo ter de abdicar da privacidade e obrigar-me a ser um pouco condescendente com a falta de arrumação dos companheiros de quarto. Ter de aturar os muitos "loucos" que tenho por colegas e vizinhos. Tanto assim que um dos lemas em tom de piada entre os estudantes cá do sítio é: "o manicómio tem inveja da yeshiva". Mas é um lugar deveras especial.

Quando comuniquei ao favorito dos meus professores a minha saída próxima, ele mostrou-se triste com a perspectiva da minha saída. Que melhor reconhecimento poderia receber eu da parte de um sábio? O director do programa de lingua espanhola - do qual fiz parte durante a minha estadia na yeshiva - comentou nestes termos a minha saída: "É pena. Vai-se um dos baluartes do nosso departamento..."

Estas palavras enchem-me de orgulho, mas também são um peso que levo às costas para a nova yeshiva. Um fardo de responsabilidade que não quero nem posso desprezar. Apesar de mudar de casa e acima de tudo de lugar de estudo, quero continuar a merecer os elogios e a consideração dos mestres que deixo. O nível que me vai ser exigido na nova yeshiva é bem mais alto do que aquele que experimentei nos últimos meses.

Ainda não sei o que me espera. Não sei se os estudos que vou iniciar na próxima semana serão parte de um plano definido de vida, para além da obrigação de qualquer homem judeu de estudar Torá. Afinal, como ensinam os sábios: "o estudo da Torá vale por todas as outras mitzvot".

publicado por Boaz às 22:58
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Perfil do autor. História do Médio Oriente.
Galeria de imagens da experiência como voluntário num kibbutz em Israel.


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